terça-feira, 18 de novembro de 2008

Texto Profª DrªMaria Luiza R. Meijome Piszezman




Terapia Familiar Sistêmica Breve: Uma nova abordagem em instituições.


INTRODUÇÃO

O que propomos no presente trabalho deriva da observação, que realizamos há vários anos, como profissional da área de psicologia clínica na qualidade de terapeuta, de docente e de supervisora de estágio. Constatamos ao longo desse processo que Instituições das mais diversas áreas de atuação, notadamente aquelas mantidas pelo poder público ou por sociedades de caráter beneficente, tais como Posto de Saúde, Hospital Público, Forum, Creche, Asilos, Escola, e outros, se vêem às voltas com dificuldades adicionais ao desempenho de suas atividades por conta dos problemas relacionados ao campo da saúde mental. As dificuldades dessas instituições residem na diversidade e complexidade das queixas trazidas pelas comunidades. A esses fatores se junta um outro, da maior relevância, que é o excesso de demanda. Os atuais modelos de atendimento não têm se mostrado eficazes na superação de todas essas variáveis.
Quando dispõem de um serviço de atendimento psicológico, o procedimento habitual implica na realização de avaliação psicológica e posterior encaminhamento aos atendimentos específicos, tais como terapia individual ou de grupo, ou ainda a especialidades médicas como psiquiatria, neurologia, endocrinologia, entre outros. Quando, enfim, recebe o encaminhamento, para uma determinada área, o cliente vê-se na contingência de esperar, novamente, por uma vaga. No caso de ser encaminhado para atendimento psicológico, se, por um lado, o interessado já passa por um processo de espera nos centros de triagem, por outro, a limitação de vagas articulada com a psicoterapia baseada apenas no intrapsíquico e de longa duração, fazem com que a demora seja ainda maior, redundando, muitas vezes, em desistência quanto a obter o tratamento.
Outro empecilho importante no campo da saúde mental é a desconfiança com que os serviços psicológicos são vistos pelas pessoas. Por exemplo, quando uma escola detecta um distúrbio de aprendizagem ou de comportamento, cuja solução está fora do alcance da ação pedagógica, entrevista um dos responsáveis, geralmente a mãe, que, a princípio, procura ocultar distúrbios no relacionamento familiar, mas quando fica mais descontraída, revela algum problema doméstico, como um pai alcoolista ou desavenças constantes entre o casal. Nesses casos a prática é a escola solicitar à família que encaminhe seu filho para uma avaliação com um psicólogo, pois está interessada na solução do problema específico de sua área de atuação. Muitas vezes, isto esbarra na resistência da família quanto a procurar ajuda, sendo as alegações mais típicas dos pais o temor de que seus filhos venham a ser estigmatizados pela comunidade; a de que a criança possa ‘piorar’ e eles passem a encontrar dificuldades no relacionamento com o filho, e a de serem culpabilizados pelas atitudes inadequadas da criança.
Nossas considerações têm como ponto de partida a natureza dos procedimentos habituais dos serviços de psicologia, pois eles contribuem para essa resistência das famílias e para uma perda na eficácia e permanência dos possíveis avanços alcançados pela psicoterapia.

a. A resistência das famílias
O atendimento individualizado faz com que as famílias, muitas vezes encontrem dificuldades em lidar com aquele membro que teve seu comportamento modificado pela psicoterapia, e “boicota” ou interrompe o tratamento.

b. O Retrocesso
O retrocesso se dá pelo mesmo motivo citado no item anterior, ou seja, os demais membros da família, que não passaram pela ação transformadora da psicoterapia, estranhando o novo comportamento de seu parente vão concentrar esforços no sentido de fazê-lo voltar a ser como antes ou, no mínimo, continuar se relacionando com a criança da mesma maneira como sempre fizeram.
Mesmo quando levam o tratamento até o fim, é muito comum à constatação não só do retorno, mas ainda, da intensificação de comportamentos inadequados.
Essas dificuldades no atendimento podem ser encontradas em outras áreas, relacionadas, ou não, com a psicoterapia. É o caso, por exemplo, de determinados especialistas como psiquiatras, neurologistas, endocrinologistas, fonoaudiólogas, as mais solicitadas, e determinados tratamentos de doenças que exigem cuidados e acompanhamento prolongado, como deficiência física, deficiência mental, bronquite e várias outras. Nos serviços de especialidades médicas que contam com o auxílio de serviço de psicologia, o procedimento mais comum é o paciente passar por uma triagem nesse serviço. O psicólogo identifica a patologia e procede ao encaminhamento para avaliação do especialista, o que implica nos mesmos problemas de espera e atrasos no atendimento com os conseqüentes prejuízos à saúde e ao desenvolvimento normal da criança. O tratamento de doenças crônicas encontra as mesmas dificuldades descritas a respeito do escolar, na obtenção de um progresso significativo: atitude pouco cooperativa dos familiares quanto ao desempenho de atividades que lhes são próprias, como estímulo ao paciente, assiduidade no comparecimento às consultas, aplicação correta da medicação prescrita, execução, em casa, de exercícios propostos, conforme as peculiaridades da patologia.
Estes exemplos nos dão uma amostra da excessiva demanda que essas instituições recebem, da diversidade e complexidade das queixas trazidas pela comunidade, e dos modelos atuais de atendimento. Essas queixas são classificadas assim como problema de saúde, problema social, para efeito de descrição, pois os problemas costumam estar associados de modo que a queixa de uma área específica repercute em outras. Problemas como alcoolismo, por exemplo, ou drogadicção, ou delinqüência, têm repercussões na área médica, na psicológica, no serviço social e na área jurídica. As dificuldades trazidas pela família, repetimos, apresentam múltiplas facetas, requerendo, a nosso ver, o concurso de várias especialidades: Serviço Social, assistência médica, assistência jurídica e, em especial, serviço psicológico, para resultar em um atendimento adequado e eficiente.

Em resumo, podemos constatar:

1. Que as Instituições mencionadas estão familiarizadas com uma gama muito variada de problemas pertinentes à sua comunidade;
2. Que, por não disporem de instrumentos adequados para fazer face a esses problemas, pouco mais lhes resta senão conviver com eles e se aterem aos serviços que lhes são próprios;
3. Que esses serviços ficam prejudicados por falta de uma participação mais efetiva da clientela no tratamento oferecido;
4. Que, por trás da queixa explicitada pelo paciente subjazem problemas de outra ordem, que são ocultados pelos familiares ou que nem mesmo são percebidos por eles;
5. Que esses problemas subjacentes são fatores que podem ter contribuído para o desencadeamento ou para a manutenção da patologia;
6. Que a demora no atendimento, especialmente na área psicológica, contribui para o agravamento não só do problema apresentado, mas de outros problemas a ele relacionados; e finalmente,
7. Que a psicoterapia individual baseada apenas no intrapsíquico nem sempre alcança os efeitos esperados, pois não atinge os problemas subjacentes à queixa apresentada.

Cabe, ainda, lembrar que a clientela dessas instituições é composta, em geral, por famílias pertencentes às classes sociais menos favorecidas e demandam por respostas objetivas para solução de problemas imediatos, necessitando de um atendimento que ajude a todos os seus membros a melhorar sua interação no seio familiar e no meio social, de modo a poderem prover o indispensável à sua subsistência, fazer face às vicissitudes que a vida lhes oferece e exercer suas prerrogativas de cidadãos. Para elas não faz sentido submeter-se a psicoterapias individuais e demoradas.


1. A TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA BREVE (TFSB)

Quando uma família procura uma Instituição buscando tratamento, apresentam um membro como ‘portador de problema’ e trazem uma queixa específica, mas na realidade toda a família está com problemas. Suas dificuldades se referem ao atendimento de necessidades imediatas de sobrevivência que são agravadas por uma falha de comunicação entre os membros do sistema familiar. Geralmente, os serviços de psicoterapia atendem somente o ‘paciente’ trazido pela família, enquanto os demais, permanecem com suas condutas habituais.
Assim sendo, consideramos não ter sentido, por exemplo, quando da ocorrência de violência doméstica contra uma criança exercida por algum membro do grupo familiar, tratar da criança isoladamente. Esse procedimento se limita a cuidar apenas do efeito do problema, no caso a vítima, deixando de lado as causas do mesmo que, muito provavelmente, sem uma intervenção abrangente, se perpetuaria. Está, muito provavelmente fadado ao fracasso, pois não interfere no ambiente onde essa criança vive, de modo que as situações tendem a se perpetuar.
Quer se trate de violência doméstica, de problema escolar, deficiência, seja física ou mental, ou ainda de outras áreas de especialidades que se expressem por meio de um sintoma, o mesmo precisa ser encarado como resultado de um fenômeno relacional, no seio familiar, sendo ele a manifestação de tal contexto.
O contexto desafiador sócio-cultural-afetivo, político e econômico, no qual inserem-se as famílias. Por ora, vamos nos ater a um dos seus aspectos basilares, o “...velho e questionável costume de separar e dividir tudo aquilo que nunca deveria ser separado para ser compreendido...” (Trillas, 2003)21 ,porque não acreditamos que ele possa apontar soluções de maior alcance.
Por isto defendemos a necessidade e a urgência de que o atendimento psicoterapêutico em Instituições possa atender a todos os envolvidos no problema e não apenas aquele apontado como o “portador do problema”. A nosso ver, a Terapia Familiar Sistêmica Breve é uma abordagem que traz inúmeras vantagens em termos de aplicação em Instituições, mas há três aspectos que consideramos essenciais:
a) a facilidade da aplicação.
b) o atendimento de todos os envolvidos no problema.
c) a rapidez na obtenção de resultados
A preocupação, agora, se volta para o como se conseguir que a Instituição possa contar com este serviço; como levá-la a tomar conhecimento desta abordagem e avaliar seus possíveis méritos e resolver o problema de como e onde ela encontrará profissionais qualificados para sua aplicação. Nosso trabalho foi dirigido no sentido de apontar uma alternativa para a solução imediata das duas primeiras dessas preocupações, e esta é a razão de ser do presente estudo.
Nossa proposta é estabelecer uma conexão entre a Universidade e a Instituição através da clínica-escola para aplicação da Terapia Familiar Sistêmica Breve com o concurso de estudantes estagiários do Curso de Psicologia.
A Terapia Familiar Sistêmica Breve considera a queixa da família sob uma perspectiva contextual, ou seja, que o indivíduo apresentado pela família como o “portador de problema” é a parte visível de um problema subjacente que afeta a toda a família.
Quando as Instituições puderem oferecer um atendimento terapêutico nesses moldes de maneira continuada e permanente, certamente haverá uma reviravolta nos procedimentos de todos os seus serviços, pois a comunidade será muito mais participante no próprio processo de atendimento. Consideremos um posto de saúde, por exemplo, ao atender uma criança asmática, o médico fará a prescrição da terapia que julgar indicada, a enfermeira dará as instruções sobre as formas mais adequadas de colocar em prática essa prescrição. Muitas vezes até mesmo o medicamento e outros recursos materiais são oferecidos ao paciente. Parece que este atendimento foi realizado à perfeição e, no entanto a criança não melhora e volta a procurar o posto e se fará tudo novamente, tudo igual, com os mesmos resultados. Em tais circunstâncias a Terapia Familiar Sistêmica Breve é de um valor inestimável, porque ela vai pesquisar a origem daquele sintoma e encorajar a família a se esmerar nos cuidados preconizados pelo serviço de saúde. Mas faz muito mais do que isso, como veremos nas linhas que se seguem.
A Terapia Familiar Sistêmica Breve é, sem dúvida, uma resposta às limitações impostas pelos tratamentos psicoterapêuticos tradicionais, marcados pela ênfase no intrapsíquico, pela longa duração e centrado no indivíduo. Ela contempla tanto os aspectos emocionais quanto os relacionais do problema, criando condições para que cada um dos componentes do grupo familiar perceba que também tem responsabilidade sobre ele. “Ah, é só sair uma briguinha em casa, seja com quem for, e o fulano já tem um ataque de asma”.
O terapeuta sistêmico seja qual for sua linha de abordagem (existem várias modalidades) entende que o sintoma seja um produto das múltiplas interações no seio familiar que promoveram a instalação do fenômeno. Em outras palavras, trata-se de uma abordagem pautada na compreensão de que comportamentos considerados inadequados ou desequilibrados que se expressam no “portador de problema” é na verdade a linguagem, por meio da qual, um subsistema comunica que algo não vai bem no sistema. O ataque de asma, do nosso exemplo, exerceria a função de interromper aquela situação de tensão familiar. Naturalmente o asmático não se apercebe disso (nem os outros familiares), do contrário não seria uma patologia.
A terapia sistêmica recebe esse nome porque toma os princípios da Teoria Geral dos Sistemas proposta por Ludwuig Von Bertalanffy (1947)3 para quem um sistema é “um complexo de elementos em interação”. Cada elemento constitui um subsistema. O sistema, por sua vez, está inserido em um contexto, é, portanto um elemento de um sistema maior, é um subsistema de um sistema maior. Por falarmos em sistema e subsistema familiar. No sistema familiar composto por pai, mãe, dois filhos e uma avó, temos várias possibilidades de composições dos elementos constitutivos ou subsistemas: o subsistema parental (pai e mãe), o subsistema marital (marido e mulher), o subsistema da prole (filhos), o sub-sistema da avó. Podemos imaginar que um dos filhos desenvolva uma forte aliança com a avó e determinadas atitudes sejam ancoradas nessa aliança. Temos aí um sub-sistema representado pela avó e um neto.
De acordo com Capra (1982)7 os chineses utilizam uma expressão muito sábia para se referir à “crise”: wei-ii, dois termos combinados que traduzidos significam perigo (wei) e oportunidade (ii). Se contextualizarmos a dimensão sutil da expressão, no âmbito da Terapia Familiar Sistêmica Breve, o perigo (wei), representado por um problema vivido como algo terrível, penoso, isolado, aparentemente insolúvel, centrado e personificado no portador de problema, quando abordado no contexto relacional familiar, pode se transformar em oportunidade (ii) de evolução de toda a família no momento em que cada um dos membros da família reconheça que o problema explícito encobre um ou mais problemas de relacionamento no seio da família. Os ataques de asma, por exemplo, podem estar encobrindo os problemas causados pelo alcoolismo do pai, as dificuldades de relacionamento do casal e assim por diante. É fácil imaginar inúmeras situações semelhantes.
Como dissemos antes a família é parte de um sistema maior, ou seja, ela é um subsistema com relação à sua rua, sua comunidade, bairro, município e assim por diante. Nesse contexto a Terapia Familiar Sistêmica Breve representa a possibilidade da criação de um espaço privilegiado de atuação saneadora no lugar onde havia mera conduta de informar, treinar e prescrever exercícios específicos. Ela é um instrumento eficaz para oferecer às famílias a oportunidade de assumir uma atitude positiva perante as dificuldades normais da existência humana e não precise procurar alívio colocando sobre um dos seus membros, embora não percebam, o pesado encargo de carregar o problema ou os problemas que pertence a todos. Dessa forma o problema passa da esfera individual para a social, do parcial para o geral (sistêmico), do intrapsíquico para o interelacional. Sob essa perspectiva seu emprego pode se tornar um verdadeiro instrumento de democratização do tratamento psicológico, pois existe a possibilidade de que o reflexo de seus resultados extrapole os limites da Instituição e vá, gradativamente atingindo outros segmentos sociais num movimento concêntrico e gradativo seguindo o curso da maior para a menor proximidade desses segmentos com a Instituição em pauta.
Atuar nesses espaços de sofrimento representa mais do que o preenchimento de uma lacuna deixada pelos moldes tradicionais de atendimento, um salto qualitativo na prestação de serviços por parte das Instituições, pois que além, de aliviar a dor reconstitui os laços afetivos, restabelece a comunicação saudável em família, promove a reorganização do sistema, amplia as oportunidades de experimentar uma vida mais plena e feliz.
Para descrever outro aspecto relevante no tocante à saúde pública preferimos fazer nossas as palavras de Sawaia (1996)19, quando ela afirma que: “...é importante para desfazer o mito de que pobre não tem sutilezas psicológicas e age como um rebanho tangido por determinações sociais e pela fome, como se os segredos da subjetividade fossem próprios das pessoas mais abastadas e intelectualizadas...” (Sawaia, 1996, p. 165). Assim sendo, e de acordo com o que já expusemos relativo ao fato da grande maioria da população que procura por tratamento nas Instituições, seja pública ou privada, ser carente, tanto afetiva, quanto economicamente, fica explicado, então, a importância de se extrapolar os limites do consultório particular, para o “consultório público”, popularizando a terapia realizando o atendimento no próprio seio das comunidades, no seu espaço, no seu ambiente.
Partimos do pressuposto que a Terapia Familiar Sistêmica Breve pode representar um avanço em termos sociais, uma vez que pretende interagir com as famílias que procuram o atendimento nas Instituições, uma vez que expressam o conceito de “sofrimento psicossocial”, que é entendido aqui de acordo com Sawaia (1996, p. 158)19 como “... sintoma de uma das carências mais profundas da modernidade: não saber conviver com a diferença, não reconhecer que nossa integridade depende da integridade alheia, permitindo que o conflito atinja o ponto de ameaçar a sobrevivência de todos.” , principalmente se atentarmos para o contexto histórico atual marcado pela divisão no seio da sociedade, pela crise geral de valores, pela perda de perspectivas, de referenciais e de auto-estima, pelas situações de abandono e miséria, todos ingredientes geradores de violência.
Uma observação se faz necessária, e novamente nos socorremos da habilidade de se expressar de Sawaia (1996, p. 165)19: “Outro alerta é necessário quando se introduz a dimensão ético-afetiva no estudo do processo saúde-doença. É preciso esclarecer que não se prioriza esta dimensão em detrimento das condições sociais e materiais. Simplesmente, considera-se que uma se transverte na outra, se transforma na outra e não existe sem a outra”.
Aqui podemos lembrar a concepção social de Sluzki (1997)20 , para quem os indivíduos pertencem a redes de relacionamento social. Assim teríamos a rede familiar, a rede formada por um tipo específico de interesse. Para usarmos um exemplo bastante próximo, citamos um aspecto do presente estudo. Ao estabelecermos um elo entre a Universidade e a Instituição constituímos uma rede social da qual nós mesma somos parte integrante. Para Sluzki (1997, p. 67) 20 a “...rede social afeta a saúde do indivíduo e a saúde do indivíduo afeta a rede social...” .
A família é um dos pilares de sustentação da rede social, por isso se

...coloca a necessidade de trabalhar a, na e com a comunidade, tornando-a um sistema relacional e um sentimento de pertencimento que se apresenta como forma de resistência contra a sociedade excludente, exploradora e competitiva. Dessa forma, seu eixo identificador é composto pela noção de solidariedade, cidadania e alteridade e pela utopia do aparecimento de comunidades sociais livres e plurais, onde os homens discutem autonomamente e elaboram projetos de forma a cada um participar do poder. (Sawaia, 1996, p. 166) 19.

Nossa experiência pessoal como especialista em terapia familiar fundamentada na teoria sistêmica e os bons resultados obtidos no estudo que realizamos aplicando a Terapia Familiar Sistêmica Breve realizada em clínica-escola por estudantes-estagiários do curso de Psicologia sob supervisão e elaboração de nossa dissertação de mestrado, posteriormente publicada (Piszezman, 1999)16, nos encorajou a empreender um aprofundamento desse estudo estendendo sua aplicação a outros tipos de Instituição. Naquela oportunidade já prevíamos a possibilidade desse avanço, porém, por questões de ordem técnica e operacional optamos por reservar esse trabalho para ocasião mais propícia (Piszezman, 2004)13.
Esta proposta se baseia na experiência de ensino em Terapia Familiar Sistêmica Breve bem sucedida, razão pela qual foi aberta para a comunidade. No que diz respeito ao Centro Universitário de Santo André – Uni-a já se mostra eficiente. A Triagem, por exemplo, ao invés de encaminhar certos casos para o Psicodiagnóstico, já encaminha, para a Terapia Familiar Sistêmica Breve, da mesma forma o Psicodiagnóstico, ao detectar um problema familiar que está relacionado com o paciente faz o encaminhamento direto, também, procedem dessa maneira os núcleos de Grupos e o de Terapia Individual e até mesmo outras Faculdades como é o caso da Faculdade de Pedagogia, que encaminha famílias cujos filhos apresentam dificuldades no processo de aprendizagem e da Faculdade de Enfermagem, cujos estagiários que fazem atendimentos hospitalares, quando percebem a necessidade de um tratamento familiar, faz a indicação.
Somos Supervisora de estágio há mais de 22 anos e há 13 anos começamos a praticar a terapia sistêmica com nossos estagiários. Nosso foco é dirigido, sempre, para a qualidade do atendimento, ou seja, para os resultados alcançados pelas famílias traduzidos na aquisição de competências para um viver mais harmonioso e pleno tanto no seio da família quanto desta em seu meio ambiente, em seu contexto social. Assim, nossa preocupação com a epistemologia dirige-se, mais, àqueles aspectos funcionais; nossa atenção se volta para as inovações técnicas apresentadas por terapeutas como, por exemplo, Adalberto Barreto, no Ceará, de Andersen na Noruega, Salvador Minuchin nos Estados Unidos, entre outros.
Aspectos significativos do atendimento tais como mobilizações da família ou da equipe terapêutica, as ressonâncias da equipe terapêutica, as narrativas, escapavam ao poder descritivo do modelo de atendimento que tínhamos adotado: elementos do Modelo Estratégico e do Modelo Estrutural (Piszezman,1999)13.
Percebemos que as interações presentes no processo terapêutico transcendiam as orientações do modelo, destinados, em última instância, a um papel mais de propulsor, de ponto de partida para as manifestações que se iam sucedendo e que não dispúnhamos de um instrumento que nos permitisse não só uma descrição mais condizente com os fatos observados, mas, sobretudo, uma melhor compreensão da riqueza de experiências resultante da multiplicidade de situações que o atendimento proporcionou a todos os envolvidos no processo: famílias, terapeutas e supervisor. A partir dessa constatação pusemo-nos à busca de um aprofundamento de nosso embasamento teórico e obtivemos como resultado, diria mesmo como recompensa, mais que a possibilidade de descrever as múltiplas facetas do atendimento, uma compreensão profunda do processo terapêutico, agora estabelecido.
Os terapeutas sistêmicos estão de tal ordem, familiarizados com as noções de circularidade e subjetividade que explicitá-las poderá lhes parecer um exercício de obviedade. Contudo, para deixar bem assentes as bases epistemológicas pelas quais nos orientamos, julgamos oportuno lembrar que até muito recentemente, e ainda hoje, muitos terapeutas concebem o mundo como uma realidade objetiva que pode ser apreendida, analisada e mensurada por um sujeito cognoscente.
Essa maneira de ver o mundo proposta pelo positivismo preconiza uma situação de causa e efeito que se dá linearmente: uma causa originará sempre uma conseqüência, que será sempre única e, necessariamente, a mesma. O método de abordagem do objeto proposto pelo positivismo é o método empirista cujo instrumento é a experimentação, ou seja, a realidade pode ser apreendida tal qual é. Ao observador competente, cabe tão somente, utilizar as formas e os instrumentos adequados de pesquisa para lograr êxito em sua pesquisa. Para que a experiência seja julgada bem sucedida, é necessário que, não importa quantas vezes se repita os mesmos resultados sejam obtidos. Outros pesquisadores, ao repetirem a experiência, deverão também, obter sempre os mesmos resultados descritos pelo primeiro. É o princípio da verdade única, oriunda da construção de um sistema de conceitos capaz de representar o mundo tal qual ele é e que traz em seu bojo a assunção de que, por intermédio da observação neutra da realidade seríamos capazes de alcançar a própria essência das coisas, o núcleo de todos os objetos e saber o que de fato eles são em si mesmos. Esta concepção de mundo pressupõe um pesquisador neutro com relação à realidade, isto é, que pode olhar objetivamente a realidade sem que seus valores pessoais ofereçam qualquer oportunidade de interferência na análise do fenômeno estudado. Segundo a visão experimentalista quando uma experiência não alcança a verdade, por certo, a causa está na inadequação, ou da abordagem ou dos instrumentos utilizados.
Nossa proposta de trabalho significa uma ruptura com o positivismo tanto da perspectiva epistemológica como, conseqüentemente, do processo terapêutico onde prática e teoria se entrelaçam e ocorrem simultaneamente. Isso significa que o terapeuta investiga ao mesmo tempo em que atua com a família. Não há lugar para a atitude de se reservar um momento para a reflexão e outro para a prática, como nas epistemologias tradicionais. Rey (1997)18 propõe o nome de epistemologia qualitativa a este procedimento que trata a teoria como um processo contínuo de produção de conhecimento.
A Terapia Familiar Sistêmica Breve não é uma criação nossa. Ela foi instituída pela Mental Research Institute, conhecido pela sigla MRI, localizado em Palo Alto, Califórnia, nos Estados Unidos. Nossa contribuição foi criar um modelo simplificado que pudesse ser assimilado e posto em prática pelos estagiários do Curso de Psicologia Clínica, no decorrer de um semestre letivo.
No modelo de Terapia Familiar Sistêmica Breve a entrevista terapêutica prescinde de avaliação psicológica prévia, pois ela é uma entrevista interventiva, ou seja, é ao mesmo tempo um diagnóstico e uma intervenção. Além disso, a Terapia Familiar Sistêmica Breve pode ser desenvolvida em cerca de 10 sessões, com freqüência semanal, distribuídas num período que varia de três a quatro meses. Assim, as famílias que procuram pelos serviços públicos podem ser prontamente atendidas.
O modelo que utilizamos prevê o atendimento por uma equipe terapêutica colaborativa formada por três terapeutas, dois encarregados das intervenções e um encarregado de gravar as sessões em fita K7. Essas equipes podem ser preparadas muito rapidamente, pois não se aprende terapia familiar lendo ou ouvindo sobre ela, mas praticando intervenções sob a supervisão de um terapeuta experiente. Assim, após um breve período de estudo dos princípios da Teoria Familiar Sistêmica e simulações de atendimento, teoria e prática passam a caminhar juntas, com a aplicação de técnicas apropriadas que proporcionam oportunidade de mudanças no sistema familiar.
Em palestras, cursos e seminários de que temos participado, ou mesmo em conversas informais sobre o conceito de interação familiar com os profissionais mencionados (médicos, assistentes sociais, educadores, religiosos, entre outros) notamos o despertar de um grande interesse na aquisição do conhecimento dessa nova maneira de ver o problema.
A implantação da Terapia Familiar Sistêmica Breve nessas Instituições certamente seria uma contribuição inestimável para os esforços de transformação social. Sua disseminação se constitui em verdadeira política de saúde mental, pois nestes tempos marcados pela violência, por dificuldades econômicas e pelo liberalismo a família já não dispõe de parâmetros seguros por onde possa se pautar, tanto no seu relacionamento interno como com seus vizinhos. O alcance da intervenção em termos de mudanças de comportamento, a rapidez com que esses resultados são obtidos e a sua abrangência poderia beneficiar comunidades inteiras em breve espaço de tempo.
Estamos convencida de que um investimento na preparação das equipes terapêuticas dessas Instituições seria muito vantajoso, não só para as comunidades como para as próprias Instituições, sejam públicas ou privadas. As públicas se beneficiariam com a eficácia do atendimento e com a economia de tempo e poderiam suportar com menos desgastes às pressões exercidas pela volumosa demanda. As privadas, pelos mesmos motivos, teriam sua imagem melhorada perante sua clientela. O aprendizado de novas formas de relacionamento familiar já seria um fator muito vantajoso para a família mesmo nos casos em que não se trata de psicoterapia, como os tratamentos neurológicos, psiquiátricos entre outros, porque a equipe da Instituição passaria a interagir com a família de uma maneira mais positiva, comprometida e interativa, evitando sentimentos protecionistas ou acusatórios para com o paciente, por compreender que a família como um todo necessita de orientação quanto à maneira de compreender o problema e lidar com ele.
Assim, a disseminação da Terapia Familiar Sistêmica Breve no seio da coletividade nos possibilitaria encontrar novas soluções para os mesmos e velhos problemas perpetuados através das gerações e para os quais a ciência tradicional não tem dado conta de responder.

REFERÊNCIAS

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20 SLUZKI, C. E. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. (Claudia Berliner, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo. 1997.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Texto Profª Esp. Janete Angelino de Oliveira



A Biodança como meio de inclusão da pessoa na terceira idade.

Acontece na última fase da vida uma importante mudança e uma profunda transformação de atitude, observa-se nesse período uma solicitação de dois movimentos, o mais natural é o movimento de "ir para dentro". O próprio corpo obedece a essa necessidade e é inevitável a vivência do declínio. O corpo fica arqueado, como se tivesse tentando olhar para dentro, vivenciando o silêncio, a ordem e a contemplação, tentando olhar para trás para construir uma imagem da própria vida e perceber a somatória das experiências vividas, ressignificando e constatando que aquilo que parecia tão importante já não é mais e, aquilo que nem imaginávamos existir agora é o de maior valor.
Há uma convocação, nesse período, para sermos nós mesmos, e não podemos nos lamentar do nosso passado, pois tudo parece fazer sentido quando olhamos retrospectivamente para nossa história, a sensação é de que nossa vida é algo que tinha de ser como foi. A vivência de ir para o centro, isto é, de voltar-se para o vida interior, estabece a conexão e a familiaridade com a alma. Estamos começando a nos conscientizar que nos afastamos da alma e perdemos o sentido da existência, do significado e dos valores interiores. E sabemos que, o que nos possibilita a busca da alma e que nos ajuda a rever e ressignificar nossa história é o feminino. É através do feminino que desenvolvemos a afetividade e a transcendência, isto é, que somos tocados pelo amor e o poder de olhar o processo existencial como um todo.
Resgatar o feminimo na pessoa do idoso é ativar os recursos necessários para a transformação que ainda ocorre na 3ª idade. Existe o chamado para isso, caso não ocorra, inevitávelmente, sofreremos.
O outro movimento é a solicitação de "ir para fora" e conservar a vitalidade, a sexualidade e a criatividade, participar de grupos onde vivenciamos a colaboração, a cooperação, a conversação, a intimidade, a reflexão sobre os condicionamentos e a capacidade de tocar no corpo do outro, de olhar e ouvir.
A vivência da Biodança na 3ª idade facilita e promove tanto a volta para o interior, como a expressão e comunicação para o mundo exterior. A Biodança como forma de expressão ligada ao corpo e como processo de transformação pode colaborar no resgate da alma feminina, pois é um instrumento facilitador do desenvolvimento das etapas do feminino, tanto nas mulheres como nos homens.
O trabalho de Biodança é uma vivência que ativa o desenvolvimento do potencial humano, o contato consigo mesma, com o outro, com o grupo e com o cosmo. É um sistema que favorece a integração de todas as linhas vitais,que são: a vitalidade, a sexualidade, a criatividade, a afetividade e a transcendência. E através destes aspectos ativados,estabelece a saúde física, psíquica e espiritual.
Favorece a revitalização e novas formas de movimentar energias na psique do idoso. É a oportunidade de reconhecermos os atributos femininos através da dança. Essas "mulheres" de nosso interior, que pedem para ocupar seu lugar, são convocadas a serem reconhecidas e se instalarem na nossa consciência.
A conscientização das etapas do feminino auxilia a integração das linhas vitais que a Biodança propõe. As "mulheres" da nossa psique que correspondem as etapas do feminino são: Afrodite, Helena, Maria e Sofia e seus atributos respectivamente são: "Aquela que tem prazer, alegria, vitalidade e sensualidade"; "Aquela que sabe o que quer e é senhora de si mesma com criatividade e sensualidade"; "Aquela que sabe expressar seus afetos"; e "Aquela que aceita as coisas como elas são e tem uma conexão com o universo".
A música encoraja e ativa a presença dos aspectos de cada "Deusa", trazendo para a consciência seus atributos, pois a música e a dança movimenta e literta as potencialidades adormecidas.
Rolando Toro criador da Biodança nos ensina que "... podemos incluir em nossas atividades a musicalidade. Caminhar com música, mexer-se, acariciar, amar...Despertar em nós a musicalidade corporal não se trata só de ouvir música, mas de "fazê-la: de mover-se dentro dela e tranformar-se na própria música".


Referências bibliográficas:

HILLMAN, J. A Força do caráter - e a poética de uma vida longa, Rio de Janeiro: Objetivo, 2001.
TORO, R. Biodanza. São Paulo: Olavobrás, 2002.

Profª Esp. Janete Angelino de Oliveira – Psicodramatista, Especialista em Bio-dança. Psicoterapeuta em Santo André.

Texto Prof. Ms. Vilmar Ezequiel dos Santos


O objeto/sujeito da redução de danos: uma análise da produção científica da perspectiva da Saúde Coletiva.*

As questões emergentes relacionadas ao complexo sistema de produção, comércio e consumo de substâncias psicoativas na sociedade contemporânea tem sido objeto de estudo por alguns campos do saber pelo seu caráter estrutural. Não se trata de um fenômeno que se compreende apenas pela sua manifestação no âmbito do consumo individual como um comportamento inadequado, desviante ou doentio de um grupo de pessoas inadaptadas. É preciso antes buscar o entendimento de suas raízes, das bases que o constituem e que dão forma ao seu estatuto atual. Para isso se requer a busca de conhecimentos e experiências que nos permitam visualizar e compreender a sua inserção dentro da estrutura social ao qual faz parte. Assim a proposição de políticas para este campo deve levar em conta os determinantes macroestruturais sem deixar de considerar a manifestação na esfera micro estrutural, antes apontar a relação dialética entre estas esferas.
Desta forma em se tratando de um campo complexo e multidimensional pretende-se apresentar a perspectiva de um conjunto de autores que trazem discussões e que remetem a análises estruturais.
A droga não adquiriu tamanho grau de importância na “pós-modernidade” somente pelos seus efeitos psicofarmacológicos, mas também pelos significados e valores que lhe foram atribuídos a partir do conjunto de saberes e práticas constituídas na sociedade. Também as respostas sociais que estabelecem parâmetros para sua disseminação e controle não estão desvinculadas das estruturas que regem e dão forma aos fenômenos sociais.
Com base nos fundamentos dos saberes constitutivos da Saúde Coletiva, pode-se afirmar que o que determina o consumo de drogas e a forma como esse se dará encontra-se alicerçado no modo de produção vigente. No capitalismo a produção tem como meta a expansão do capital e é com esse intuito que as drogas são produzidas. Todos os demais processos estão determinados por essa marca inicial e nesse sentido o comércio tem como meta a expansão e a proliferação das mercadorias produzidas se utilizando de complexos mecanismos para levar a cabo esse objetivo. Assim o consumo e a forma como este se dará é o resultado da transformação da droga em uma mercadoria e todo o processo de valoração que se segue para atingir diversos públicos em diferentes situações e contextos reforçando o processo de desumanização das relações para fazer valer os objetivos da reprodução do capital. Assim refere Barata (1994):
(...) A produção não está fundamentalmente determinada pelas necessidades do homem produtor e consumidor, mas sim pelo fato de que estes são potencial ou realmente manipulados, e o homem convertido em um instrumento de ampliação do benefício e da acumulação do capital, em prol da reprodução do sistema econômico global. Esta situação de subordinação estrutural do produtor-consumidor a um sistema produtivo cujo verdadeiro centro e sujeito não é o homem, mas sim o próprio sistema que se auto-reproduz às suas custas; esta perversão fundamental entre ser humano e sistema, por intermédio da qual o sistema usurpa a qualidade de “sujeito’ que competiria ao homem, já por si só tem efeitos negativos e desestabilizadores no que se refere a um consumo cultural e ”higienicamente” idôneo de certas drogas (BARATA, 1994, p. 36).
A estrutura produtiva e seus mecanismos de expansão é sustentada por uma superestrutura jurídica-política-ideológica que imprime formas de controle sobre a forma mercadoria-droga que por sua vez tem agravado ainda mais os problemas resultantes do consumo. A criação e o fomento de leis proibicionistas criminalizando a produção, o comércio e o consumo de um conjunto de substâncias psicoativas é uma das formas de controle utilizadas desde o início do século XX. O sistema de proibição gerou uma estrutura secundária: o narcotráfico - um gigantesco aparato ilícito que se somam ao sistema legal das mercadorias drogas.
Coggiola (2001) remete a uma análise sobre os aspectos econômicos do narcotráfico, em especial da cocaína, em escala mundial, mostrando como a explosão do consumo e a popularização da droga vai de encontro à deterioração das condições de vida e dos valores humanos.
[...] Os setores mais afetados são precisamente os mais golpeados pela falta de perspectivas: a juventude condenada ao desemprego crônico e à falta de esperanças e, no outro exemplo, os filhos das classes abastadas que sentem a decomposição social e moral (COGGIOLA, 2001).
Ainda este autor discute a dependência econômica dos países produtores (destacando Colômbia, Peru e Bolívia) em relação ao narcotráfico e assinala que a expansão desta atividade lucrativa na América Latina significou a degradação de países inteiros ao simples papel de apêndice do narcotráfico. Porém os maiores lucros se mantêm nos países que são os maiores consumidores.
[...] Na América Latina só reingressa entre 2% e 4% dos US$ 100 bilhões que produzem anualmente as vendas de cocaínas nos Estados Unidos. A parte mais lucrativa do negócio é incorporada pelos bancos lavadores e, em menor medida pelos próprios cartéis que internacionalizaram a distribuição de seus lucros, seguindo o padrão de fuga de capitais que desenvolveram as burguesias latino-americanas na última década. O preço da coca na plantação boliviana é 250 vezes menor que nos EUA. A mesma mercadoria no porto colombiano é cotada 40 vezes menos que nas cidades norte-americanas (COGGIOLA, 2001).
Tratando da relação capitalismo-droga, Baratta (1994, p. 39) assinala que a mercantilização selvagem de certas drogas tem relação direta com a mercantilização geral de todas as coisas, resultado de um sistema de relações de produção em que prevalece a lógica da reprodução do sistema em detrimento das necessidades reais dos homens. Nesse sentido a demanda pelo consumo de drogas na atualidade estaria diretamente relacionada com os mecanismos do capital, “como tributária da necessidade de evadir-se das angústias produzidas pela realidade.”
Uma análise de Kaplan (1997) sobre tráfico de drogas, soberania estatal e segurança nacional irá permitir traçar correlações entre o fenômeno atual do narcotráfico e a crise global gerada pelo capitalismo. Segundo esse autor o narcotráfico deve ser considerado, por um lado, como um componente do contexto global representado pelo alto grau de concentração de poder em escala mundial, pela mutação do neocapitalismo nos centros desenvolvidos, pela transnacionalização, pela nova divisão mundial do trabalho e pela terceira revolução industrial e técnico-científica. Globalização esta na qual os países de capitalismo periférico se inserem e da qual provém poderosa restrição externa a seus interesses nacionais e a sua transformação progressiva. Ainda se consideram as situações, processos e crises estruturais destes países, os limites encontrados e os fracassos e efeitos negativos de seus esforços de desenvolvimento. Nesse cenário, de insuficiências e distorções de crescimento econômico insuficiente, é que o narcotráfico encontra um terreno propício para o seu fortalecimento e desenvolvimento.
[...] es esta naturaleza estructural del narcotráfico lo que en última instancia explica las limitações, vicisitudes y fracasso de las estratégias y políticas propuestas de lucha contra la adicción y el tráfico de drogas (KAPLAN, 1997, p. 44).
O narcotráfico, segundo esse autor, constituído e centrado inicialmente na Colômbia e depois no Peru e Bolívia e em outros países Centrais, Sul-americanos e do Caribe, organiza e impõe uma divisão regional e internacional do trabalho em todos os aspectos e níveis de sua atividade.
[...] un número cresciente de grupos, sectores, procesos, países, espacios y circuitos, son incorporados a la órbita del tráfico e sus organizaciones. Son especializados en la producción de la materia prima y en la elaboración industrial de las drogas, el transporte y las comunicaciones, la distribuución, la comercialización, la violência de autoprotección e agresión, la prestación de servicios conexos, el lavado de dólares, las reinversiones ilícitas, las nuevas inversiones en la economia formal. El narcotráfico atribuye diferentes papeles y tareas a los países de su órbita, de producción, tránsito, consumo, lavado de dinero que, con el tiempo y el cambio de situaciones, pueden reasignarse y recombinarse de manera diferente (KAPLAN, 1997, p. 45).
Esta dimensão do narcotráfico gera ou reforça uma proliferação de atividades comerciais e profissionais para satisfazer a demanda de bens e serviços dos mais variados tipos. Com isso aumentam e prosperam as profissões e ofícios correspondentes e o nível de ocupação que atingem os grupos sociais de maneira diferente.
[...] la insatisfacción difundida respecto al funcionamiento del sistema político y a las limitaciones de la vida democrática, la irregularidad e insuficiência del crecimiento, su estancamiento y regresión, la degradación de la situación econômica y social de grandes sectores de la población, incrementan los cinturones y bolsones de miséria y marginalidad como sectores privilegiados de reclutamiento y despliegue de los consumidores de drogas, de los narcotraficantes, y de otros actores y formas de la criminalidad y la violência (KAPLAN, 1997, p. 57).
A droga como uma mercadoria em expansão do consumo em um sistema globalizado é o que há de comum entre a estrutura do narcotráfico e a indústria lícita de substâncias psicoativas. Carneiro (2002) fornece uma compreensão das formas atuais de consumo compulsivo como conseqüência da reprodução ampliada do capital e a transformação dos produtos em fetiches da forma-mercadoria. Assim são disseminadas diversas formas de marketing imprimindo valores de consumo visando transformar o sistema de drogas num gigantesco sistema de multiplicação do capital.
A própria essência do mecanismo de reprodução ampliada do capital baseia-se no incentivo às formas de consumo de mercadorias baseadas não num valor de uso intrínseco, mas num fetiche da forma-mercadoria que sobrepõe-se à efetivas satisfações de demandas sociais. O consumo das mercadorias fetiches é estimulado por complexos e cada vez mais poderosos mecanismos de criação de comportamentos de consumo compulsivo. A publicidade, municiada por técnicas comportamentalistas, como as desenvolvidas por Watson, impinge o consumo compulsivo [...].
Conforme refere Carneiro (2002) o que está em jogo é a imposição pelos ditames do capital de uma nova modalidade de consumo – compulsivo - que dissemina novas necessidades no cardápio das mercadorias. O que se cria como nova forma de subjetividade é uma emergência em consumir pouco importando se o resultado final dessa equação vai de encontro aos propósitos humanos.
A sociedade contemporânea é cada vez mais viciada: em alimentos, em roupas, em carros. Diversas práticas sociais tomam características compulsivas: as torcidas esportivas viciam-se em seus times e adotam comportamentos de dependência, os próprios esportistas, pressionados pela indústria da quebra dos recordes, viciam-se literalmente em suas próprias endorfinas, quando não tomam simplesmente aditivos hormonais ou excitantes. Diversas práticas como o alpinismo ou a direção de carros velozes, tomam a mesma dimensão viciante e socialmente arriscada de certos consumos de drogas (CARNEIRO, 2002, P. 12-13).
O complexo sistema das substâncias psicoativas também tem sua face na expansão e crescimento das indústrias lícitas e a produção em grande escala de bebidas alcoólicas, tabaco, medicamentos psicotrópicos e outras substâncias psicoativas com promessas de solução mágica para problemas contemporâneos de difícil solução. Um exemplo é o crescimento do consumo de medicamentos tipo anfetamínicos por mulheres com a finalidade de regimes para emagrecimento rápidos, o que tem resultado em problemas graves de saúde. Essa busca desenfreada por aquilo que é idealizado socialmente coloca em evidência as necessidades de saúde e o cuidado de si que sede lugar à realização humana pela aparência e não pela essência do ser.
Ainda segundo Birman (2006) o consumo de drogas se apresenta como uma “modalidade de compulsão” que se banalizou na contemporaneidade e que se estendeu para o campo dos medicamentos psicotrópicos.
As toxicomanias, com efeito, não se restringem ao uso das drogas ilegais, produzidas e comercializadas pelo narcotráfico, mas incluem também as drogas legais, legitimadas cientificamente pela medicina e pela psiquiatria. Refiro-me, assim, aos medicamentos psicotrópicos, que são receitados pelos médicos e psiquiatras, para regular o mal-estar dos indivíduos, além, é claro, dos analgésicos de potência variável. Dos ansiolíticos aos antidepressivos, passando pelos estimulantes, a farmacopéia médica oferece um vasto cardápio de possibilidades (BIRMAN, 2006, P. 181, 191).
Deste modo as dependências não se explicariam somente a partir dos saberes da psiquiatria e da psicofarmacologia que atribuem como causas centrais certas propensão genética ou falha psíquica dos sujeitos somada aos efeitos nocivos e poderosos das substâncias psicoativas, mas fundamentalmente a partir da constituição de um modo de resposta compulsiva inscrita “nos estilos contemporâneos de existência” (Birman, 2006). Este autor salienta que foram constituídas na contemporaneidade novas formas de subjetividades que marcam os processos da vida social onde se modificam os registros da psique e se constituem novos valores e novas modalidades de mal-estar.
Imersa que fica na dor e no ressentimento, portanto, a subjetividade contemporânea se evidencia como essencialmente narcísica, não se abrindo para o outro, de forma a fazer um apelo. Isso porque pega mal precisar do outro, pois isso revelaria as falhas do demandante. Na cultura do narcisismo, as insuficiências não podem existir, já que essas desqualificam a subjetividade, que deve ser auto-suficiente [...]. Em contrapartida, o sofrimento é uma experiência alteritária. O outro está sempre presente para a subjetividade sofrente, que se dirige a ele com o seu apelo. Daí sua dimensão de alteridade, na qual se inscreve a interlocução na experiência do sofrimento. Isso porque a subjetividade reconhece aqui que não é auto-suficiente, como na dor. (BIRMAN, 2006, p. 191-2).
O consumo prejudicial de substâncias psicoativas, conforme refere Soares (2007), também é marcado pelas transformações ocorridas no mundo do trabalho produzindo uma crise que excluí uma grande parcela das populações de acesso a um trabalho que lhes garanta condições de consumo de bens materiais e imateriais satisfatórias ao bem-estar pessoal e social.
Na mesma direção, porém de um ângulo diferente, no intuito de perceber o consumo de drogas como particular conseqüência da vida social contemporânea, vimos assinalando como a reestruturação produtiva, ao tornar o trabalho incerto e produzir um enorme exército de excluídos do mercado de trabalho, estimula a competição e alicerça o florescimento de valores individuais de competência. Os indivíduos portadores de competências para trilhar o seu destino passam a ter a responsabilidade de identificar e trilhar sozinhos os caminhos para o sucesso [...] (SOARES, 2007, p. 45, 51).
Apesar dos argumentos até aqui expostos para explicar o aumento em grande escala do consumo de substâncias psicoativas sob a égide do modo de produção capitalista as políticas e respostas da sociedade se restringiram até o presente momento ao objetivo inatingível de banimento das drogas ilícitas e do controle e restrição das drogas lícitas como formas de conter os problemas humanos.
No âmbito das políticas hegemônicas em vigor a quase um século a droga é considerada a causa dos problemas das pessoas, desconsiderando-se o caráter histórico e social do consumo de drogas e os diferentes significados que vem adquirindo na contemporaneidade. Prevê a possibilidade de uma sociedade livre de drogas sendo que isso dependeria do esforço individual das pessoas. Tem caráter idealista e trabalha com informação tendenciosa e dirigida, criando mitos. Os métodos são punitivos, controlistas, partem de fórmulas universalistas, aplicáveis em qualquer situação que abstraem os indivíduos de sua singularidade e desconsideram seus valores culturais ou suas possibilidades concretas de reprodução social. Os indivíduos são vistos como indefesos, frágeis emocionalmente e moralmente, à mercê da droga, ou “desviantes”. O que se alia a um poder mágico de sedução e de destruição atribuídos às substâncias psicoativas e principalmente àquelas onde foram impressas as marcas da proibição. Os objetivos das políticas são os de estancar a produção, o comércio e o consumo se utilizando de estratégias repressivas para impedir o acesso pelas pessoas e quando este não é evitável oferecer únicamente alternativas de abstinência. O resultado destas políticas, já demonstrados historicamente, são os mais catastróficos possíveis: a produção continuou em grande escala, o comércio se espandiu, assim como também o consumo prejudicial e problemático. A criminalização do consumo condenou um contingente grande de usuários à prisão e à marginalização e exlusão social. As estratégias de prevenção e tratamento ficam restritas às pessoas que se submetem ao regime de abstinência, impondo métodos morais e muitas vezes desumanos.
Desta forma a herança das políticas internacionais de drogas, denominada de guerra às drogas, tornam o momento atual preocupante. Pois se por um lado estamos diante de um fenômeno do consumo prejudicial em grande escala determinado pelas formas atuais de acumulação capitalista por outro vivemos um processo de desigualdade social agravado pela inserção de um contingente significativo de pessoas, principalmente nos países que carecem de políticas sociais estáveis, nas atividades ilícitas do narcotráfico.
No entanto neste cenário obscuro se desenvolvem novos paradigmas políticos com o intuito de contrapor as políticas vigentes. Como é o caso da redução de danos que se instala primeiramente como uma prática para prevenção da Aids e doenças transmissíveis para populações de usuários de droga em situação de exclusão e se amplia para propor novos aparatos teóricos e metodológicos para equacionar a relação entre políticas e consumidores de drogas. No paradigma da redução de danos, compreendido sob a ótica da saúde coletiva, a demanda e a oferta de drogas constituem um processo histórico e social remetido à teia de causalidade que envolve os jovens, suas famílias e as classes sociais a que pertencem nas suas diferentes possibilidades de reprodução social. Compreende que a utilização de drogas é uma realidade comprovada historicamente em todas as sociedades desde a antiguidade, mas que no capitalismo a droga é uma mercadoria que alimenta grandes oligopólios de drogas ilícitas e o narcotráfico, portanto assume uma característica distinta em função do contexto atual. Tem caráter realista e procura desfazer mitos e preconceitos sobre as drogas e consumidores, trabalhando com informação científica, mas também busca denunciar as desigualdades sociais que estão nas raízes do consumo de drogas e do envolvimento dos jovens com o narcotráfico evidenciando os valores que mascaram a realidade social. Os métodos são adequados à realidade de cada local e não se limitam a combater a droga ou o pequeno tráfico não se propondo a serem modelares, mas adequados a cada situação. Os indivíduos são considerados ativos e criativos e capazes de protagonizar mudanças sociais. Desta forma abrange qualquer tipo de avanço no sentido de minimizar os prejuízos que possam advir do consumo de drogas lícitas ou ilícitas e, portanto, não visam a abstinência como única meta aceitável. Essas políticas buscam resgatar os aspectos éticos e humanos da relação entre homem e consumo de drogas sem, no entanto fechar os olhos para os problemas sociais e de degradação da vida que atinge uma grande parcela da população.
Diante desta amplitude de questões que envolvem as discussões em torno desse tema é imprescindível que não se perca de vista os valores que nos fazem e nos tornam humanos em contraposição à tônica de que os fins justificam os meios.
REFERÊNCIAS bibliográficas
BARATTA, A. Introdução a uma sociologia da droga. In: Mesquita F, Bastos FI, organizadores. Drogas e AIDS: estratégias de redução de danos. São Paulo: Hucitec, p. 21-43, 1994.
BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
CARNEIRO, H. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Rev Out IES, n.6, p.115-28, 2002.
COGGIOLA, O. O comércio de drogas hoje. Olho História [periódico na Internet]. 2001. [citado 2006 dez 10]. Disponível em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/04coggio.html
KAPLAN, M. Tráfico de drogas, soberania estatal, seguridad nacional. Sistema, n. 136, p. 43-61, 1997.

SANTOS, V.E. O objeto/sujeito da redução de danos: uma análise da literatura da perspectiva da saúde coletiva. [Dissertação] EEUSP. São Paulo, 2008.
SOARES, C.B. Consumo contemporâneo de drogas e juventude: a construção do objeto na perspectiva da saúde coletiva [tese livre-docência]. São Paulo: EEUSP, 2007.

*Texto baseado na dissertação de mestrado.

Texto Prof.ª Ms. Liane Weissmann




Psicodrama e Inclusão Social

Moreno, o criador do Psicodrama, tinha, desde o princípio de sua prática, uma preocupação com a inclusão social. Seus primeiros trabalhos, não eram propriamente psicoterapêuticos e sim “sociátricos”. Trabalhou com pessoas marginalizadas dos campos de refugiados de guerra, com prostitutas, e com crianças dos jardins de Viena.
Moreno, psicodramatista, assim como Winnicott, psicanalista, tinham uma visão, de certa forma mais otimista que Freud quanto à possibilidade de inserção social do ser humano poder ocorrer sem tantos traumas e coações. Freud achava inevitável certo represamento da energia vital da instintividade e do desejo humano para haver inserção social - veja-se o “Mal Estar na Civilização”.
Moreno e Winnicott, não viam o Homem como Ser de Desejo e Instinto e sim como Ser basicamente de Espontaneidade e Criatividade. Isso torna fundamental a atuação do ambiente e dos vínculos para o bom desenvolvimento do ser humano.
Moreno também valoriza a Empatia e a Tele: Capacidade de num determinado vínculo, o sujeito perceber corretamente o Outro, ao contrário dos vínculos onde predomina a Transferência de experiências dos vínculos passados.
Ambos: Moreno e Winnicott consideram que o bom desenvolvimento se dá num ambiente lúdico, flexível o suficiente para acolher a espontaneidade do indivíduo. Só é saudável quem sabe brincar. Quem não brinca fica desprovido de sua saúde e de sua vitalidade. Para o Psicodrama, o ambiente lúdico por excelência é o espaço dramático, o “faz-de-conta”, o “como se” que possibilita uma liberdade de experimentação com algum suporte real e muito espaço para a fantasia.


Etapas da Sessão de Psicodrama
Distinguem-se, no desenvolvimento da ação dramática, três momentos que possuem cada um, uma importância singular. A primeira fase, chamada aquecimento, é onde se prepara o clima do grupo. Escolhem-se um tema e um protagonista e tenta-se penetrar no mesmo no maior nível de espontaneidade possível. O segundo momento ou fase é a representação propriamente dita, a cena dramática. Aqui ganham importância os egos-auxiliares, que serão os encarregados de encarnar os personagens para os quais o protagonista os escolheu: os personagens reais ou fantasiosos, aspectos do paciente, símbolos do seu mundo. O terceiro momento ou fase é o compartilhar, é onde o grupo participa terapeuticamente. Nesta etapa o grupo devolve, compartilha seus sentimentos e vivências, tudo o que lhes foi acontecendo durante a cena, as ressonâncias que ela produziu.
Técnicas dramáticas
As diversas técnicas dramáticas utilizadas durante a representação foram pensadas por Moreno em relação com sua teoria da evolução da criança. Cada uma delas cumpre uma função que corresponde a uma etapa do desenvolvimento psíquico. O diretor do Psicodrama instrumentará, em cada situação, aquelas que pareçam mais adequadas e correspondentes ao momento do drama, segundo o tipo de vinculação que nele se expressa.
A primeira etapa de indiferenciação do Eu como o Tu corresponde á técnica do duplo. A segunda, do reconhecimento do Eu, a técnica do espelho. A terceira etapa do reconhecimento do eu, a técnica da inversão de papéis. Na técnica do duplo, um ego - auxiliar desempenha o papel do protagonista. Verbal e gestualmente complementa aquilo que, a partir desse desempenho, entende e sente que o protagonista não pode expressar completamente por ser isto desconhecido ou oculto por inibições. Coloca-se ao lado em idêntica postura ao protagonista, fazendo seus movimentos, funcionando como a mãe e a criança na primeira etapa.
Na técnica do espelho, o protagonista sai do palco e é público da representação que um ego - auxiliar faz dele. Busca-se, com isso, que o paciente se reconheça em determinada representação, assim como na sua infância reconheceu sua imagem no espelho. O terapêutico desta técnica está em que se reconheçam como próprios os comportamentos e aspectos que lhe são desconhecidos e que importam para o esclarecimento do conflito.
Utilizando a técnica da inversão de papéis, a mudança de papéis investiga na cena o sentir desses personagens do mundo do paciente. Esta é a técnica básica do Psicodrama.
Alem da capacidade espontâneo/criativa e lúdica e da tele, a inversão de papeis também é um critério de saúde e maturidade .
Além das citadas existem outras técnicas dramáticas criadas por Moreno e posteriores a ele.
Moreno, tomando do modelo teatral seus elementos, distinguem, para a cena psicodramática, cinco elementos ou instrumentos:
a) Cenário: neste continente desdobra-se a produção e nele podem-se representar fatos simples da vida cotidiana, sonhos, delírios, alucinações. b) Protagonista: o protagonista pode ser um indivíduo, uma dupla ou um grupo. É quem, em Psicodrama, protagoniza seu próprio drama. Representa a si mesmo e seus personagens são parte dele. Palavra e ação se integram, ampliando as vias de abordagem. c) Diretor: o psicoterapeuta do grupo é também o diretor psicodramático. O diretor do psicodrama está atento a toda informação ou dado que o protagonista de, para incluí-la na cena, guia e ajuda a chegar à cena com espontaneidade. Uma vez começada a cena, o diretor se retira do espaço dramático e somente intervém se é necessário incluir alguma técnica, dando ordens ao protagonista ou ego-auxiliares. d) Público: é o grupo terapêutico



Concluindo
A dor da exclusão social, em suas diversas manifestações, serviu de inspiração para Moreno criar instrumentos de ajuda aos seus semelhantes: a sociometria, a psicoterapia de grupo e o psicodrama. Sua vida foi dedicada aos excluídos: pobres, prostitutas, refugiados, prisioneiros e doentes mentais. Certamente, ele permitiu o surgimento e influenciou decisivamente a psicoterapia de grupo, a psicoterapia comunitária e varias formas terapêuticas e pedagógica de abordar os agrupamentos humanos, no sentido de torná-los mais ... Humanos.



Bibliografia:
Gonçalves, C. S. Wolff, J. R. e Almeida,W. C. – “Lições de Psicodrama” São Paulo Ed. Ágora 1988
Winnicott, D. W. – “ O Ambiente e os Processos de Maturação” Porto Alegre Ed. Artes Medicas 1982
Wikipedia – “Psicodrama”

Texto Profª Ms Cláudia Oshiro


A relação terapêutica como mecanismo de mudança: uma introdução

O presente trabalho tem como objetivo introduzir o tema “relação terapêutica como mecanismo de mudança” e apontar a relevância da relação terapêutica no processo de mudança clínica de clientes com transtorno de personalidade borderline. Para isso, faz-se necessário retomar brevemente algumas questões que norteiam a Terapia Analítico-comportamental. Também será discutida brevemente a definição de transtorno de personalidade de acordo com os pressupostos do Behaviorismo Radical. Por fim, a Psicoterapia Analítica Funcional (Functional Analytic Psychotherapy – FAP) será apresentada.

A terapia analítico-comportamental
A análise do comportamento tem como base uma filosofia, o Behaviorismo Radical, que se exercita através de uma interpretação de dados obtidos pela investigação sistemática do comportamento (Análise Experimental do Comportamento). Esta interpretação enfatiza a descrição de relações funcionais entre comportamento e ambiente (isto é, relações entre descrições de ações dos organismos e descrições das condições em que essas ações ocorrem). Não busca explicações realistas ou de causa-efeito, e sim relações funcionais ou leis que expressem seqüências regulares de eventos (Matos, 1997).
Desta forma, a metodologia maximiza a habilidade para entender (prever) e mudar (controlar) comportamento (Skinner, 1953).
Segundo Matos (1997), o behaviorista radical propõe que existam dois tipos de transações entre o organismo e o ambiente: a) conseqüências seletivas, que ocorrem após um comportamento e que modificam a probabilidade futura de ocorrerem comportamentos equivalentes, isto é, da mesma classe; b) contextos que estabelecem a ocasião para o comportamento ser afetado por essas conseqüências e que igualmente afetariam a probabilidade futura de ocorrência de comportamentos equivalentes.
Essas duas classes possíveis de interações são denominadas “contingências” e constituem as duas classes conceituais fundamentais para o trabalho de descrição e análise do comportamento para o behaviorista radical (Matos, 1997). Relações funcionais são estabelecidas na medida em que registramos mudanças na probabilidade de ocorrência dos comportamentos que procuramos entender, em relação a mudanças quer nas conseqüências, quer nos contextos, quer em ambos (Matos, 1997, 1999).
No que diz respeito à prática clínica, podemos considerar, de acordo com Neno (2003), que a denominação terapia analítico-comportamental refere-se à prática clínica baseada nos fundamentos do behaviorismo radical e na análise de contingências. Esta denominação é útil para diferenciar a prática realizada pelos diversos terapeutas que se intitulam terapeutas comportamentais, como os terapeutas cognitivos, cognitivo-comportamentais, analítico-comportamentais que diferem em seus princípios e supostos filosóficos. A mesma autora afirma que “o que se pretende com esse termo é designar a terapia verbal baseada na análise do comportamento”.
Segundo Meyer (2003), analisar as contingências implica em identificar e descrever condições ambientais antecedentes e conseqüentes ao comportamento de interesse. Meyer (2003), Follete e cols. (1996) e Sturmey (1996) apontam que os principais focos para a realização de uma análise de contingências são: identificar o comportamento alvo, suas propriedades tais como freqüência e duração, e identificar as relações entre as variáveis ambientais e o comportamento, ou seja, observar a ocasião em que a resposta ocorre, e quais as conseqüências reforçadoras que mantém esta resposta, para em seguida propor uma intervenção. É a partir disso que o terapeuta pode selecionar a intervenção adequada, monitorar o progresso ao longo do tratamento e avaliar a efetividade da intervenção (Follete, Naugle & Linnerooth, 2000). De acordo com Neno (2003), a análise dessas relações funcionais compõe o modelo explicativo e de interpretação da análise do comportamento.

O conceito de personalidade sob a perspectiva da Análise do Comportamento
Em Ciência e Comportamento Humano, Skinner (1953) aponta que os termos “personalidade” ou “eu” dentro de uma perspectiva da análise do comportamento devem ser entendidos de outra maneira. Segundo ele, considerando uma definição mais usual,
“O eu é mais comumente usado como uma causa hipotética de ação... sua função é atribuída a um agente originador dentro do organismo. Se não podemos mostrar o que é responsável pelo comportamento do homem dizemos que ele mesmo é responsável pelo comportamento... O organismo se comporta, enquanto o eu inicia ou dirige o comportamento.
Além disso, mais do que um eu é necessário para explicar o comportamento de um organismo... A personalidade, como o eu, é considerada responsável pelas características do comportamento” (p.271).
Como alternativa Skinner (1953) sugere que,
“o eu é simplesmente um artifício para representar um sistema de respostas funcionalmente unificado... Um eu pode se referir a um modo de ação comum... Em uma mesma pele encontramos o homem de ação e o sonhador, o solitário e o de espírito social... Por outro lado uma personalidade pode se restringir a um tipo particular de ocasião – quando um sistema de respostas se organiza ao redor de um dado estímulo discriminativo. Tipos de comportamento que são eficazes ao conseguir reforço em uma ocasião A, são mantidos juntos e distintos daqueles eficazes na ocasião B. Então a personalidade de alguém no seio da família pode ser bem diferente da personalidade na presença de amigos íntimos. (p. 273).
Desta forma, a visão comportamental do conceito de personalidade é muito diferente de propostas de outras abordagens teóricas. Segundo Skinner (1953), não há a existência de um eu que é responsável pela ocorrência de comportamentos. Há a rejeição de um “eu” iniciador que dirige a ação. Um eu ou uma personalidade é, na melhor das hipóteses, um repertório de comportamento partilhado por um conjunto organizado de contingências (Skinner, 1974). Assim, o conceito de personalidade pode ser compreendido, sob os pressupostos do behaviorismo radical, como um conjunto de comportamentos aprendidos pela pessoa, ou seja, como o repertório comportamental de cada um. Esse repertório é multideterminado e sofre influências dos três níveis de seleção apontados por Skinner (1953): a filogênese, a ontogênese e a cultura.
Para uma descrição topográfica (DSM-IV, 1994), o indivíduo que apresenta características de transtorno de personalidade tem um padrão duradouro e rígido de experiência interna e comportamento que desvia marcantemente das expectativas da cultura do indivíduo. Este padrão manifesta-se em pelo menos duas das seguintes áreas: a. cognição (formas de perceber e interpretar a si mesmo, outras pessoas e eventos); b. afetividade (variedade, intensidade, labilidade da resposta emocional e o quanto ela é apropriada ou não); c. relacionamentos interpessoais; 4. controle de impulsos.

A relação terapêutica como mecanismo de mudança clínica
Terapeutas e pesquisadores preocupados em investigar como as mudanças em psicoterapia aconteciam começaram a estudar a relação terapêutica, que foi considerada uma variável importante na produção dessas mudanças (Vermes, Zamignani & Kovac, 2007). Assim, uma atenção especial foi dada à qualidade da interação estabelecida entre cliente e terapeuta (Meyer e Vermes 2001).
Desde então, a relação terapêutica tem sido considerada uma das variáveis mais importantes para a produção de mudanças no comportamento do cliente. De acordo com Meyer e Vermes (2001), o processo de mudança se dá sob dois conjuntos de variáveis: de um lado estão as técnicas e habilidades do terapeuta e de outro a natureza da relação terapêutica que ele estabelece com o cliente. De acordo com esses autores, a relação terapêutica é um tipo especial de interação social na qual um dos indivíduos busca ajuda para melhorar as contingências de sua vida e o outro possui, em seu repertório, uma gama de estratégias de análise e intervenção que podem contribuir para a ajuda requisitada. Terapeuta e cliente são falantes e ouvintes em uma série de episódios verbais a partir dos quais ocorre um constante processo de modelagem no repertório de comportamentos de ambos os participantes (Meyer & Vermes, 2001).
Zamignani (2007) aponta que o desenvolvimento dessa relação depende de muitas variáveis que vão desde características físicas e estilos de relacionamento interpessoal de cada um dos participantes, até os momentos escolhidos pelo terapeuta ao longo do processo para apresentar determinadas verbalizações, tom de voz, expressão facial que ele utiliza para a emissão da resposta verbal.
Uma condição para que o terapeuta seja bem sucedido nas suas intervenções é o que Skinner (1953) chamou de “audiência não-punitiva”, sendo esta a principal característica da relação terapêutica. De acordo com o autor, as agências de controle (o governo, a religião, a educação e o controle econômico) oferecem, freqüentemente, estimulação aversiva aos membros da sociedade. Geralmente, os clientes que procuram terapia se encontram em situações aversivas e buscam obter uma supressão dos efeitos dessa estimulação. O terapeuta se comportando com uma audiência não-punitiva pode ser um agente reforçador e oferecer conseqüências reforçadoras a respostas emitidas pelo cliente durante a sessão para a modelagem de repertório, além de dar condições para uma maior adesão aos procedimentos propostos. O terapeuta acaba facilitando o relato de temas e comportamentos que foram punidos no ambiente natural do cliente. Em contrapartida, se houver estimulação aversiva nas sessões de terapia, respostas improdutivas para o processo terapêutico podem aparecer, como por exemplo, respostas de esquiva da terapia ou do terapeuta, respostas agressivas e de fuga e esquiva (Kohlenberg & Tsai, 2001).
Assim, a relação terapêutica passa a ser uma base para o terapeuta se estabelecer como audiência não-punitiva, criando condições para o desenvolvimento do trabalho clínico.

A Psicoterapia Analítica Funcional (Functional Analytic Psychotherapy – FAP)
Uma das principais características do Transtorno de Personalidade Borderline refere-se à instabilidade e intensidade dos relacionamentos e em alguns casos, observa-se uma esquiva de intimidade. A FAP enfatiza os problemas interpessoais e, segundo Kohlenberg e Tsai (2001), essa forma de terapia enfocaria justamente as variáveis da relação terapêutica como instrumentos de mudança comportamental.
De acordo com esses autores,
“(...) tudo que um terapeuta pode fazer para auxiliar os clientes ocorre durante a sessão. Para o behaviorismo radical, as ações do terapeuta afetam o cliente através de três funções de estímulo: 1) discriminativa, 2) eliciadora e 3) reforçadora” (p.19). “Ao assumirmos que (1) o único modo do terapeuta ajudar o cliente é por meio das funções reforçadoras, discriminativas e eliciadoras das ações do terapeuta, e que (2) estas funções de estímulo no decorrer da sessão exercerão seus maiores efeitos sobre o comportamento do cliente que ocorrer na próxima sessão, então a principal característica de um problema que poderia ser alvo da FAP é que ele ocorra durante a sessão. Além disso, os progressos do cliente também deverão ocorrer durante a sessão e serem naturalmente reforçados pelos reforçadores existentes na sessão. O mais importante é que os reforçadores sejam as ações e reações do terapeuta em relação ao cliente” (p.20).
Dessa forma, o indivíduo se comporta em relação ao terapeuta da mesma forma que o faz no seu cotidiano com outras pessoas, ou seja, esses ambientes poderiam ser funcionalmente idênticos. Portanto, se um deles for alterado, essa mudança também se generalizará para os demais ambientes (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001; Follete, Naugle, Callaghan, 1996).
Segundo Kohlenberg e Tsai (1991/2001), os efeitos da psicoterapia são maiores se os comportamentos problemas do cliente e suas melhoras ocorrerem na sessão de terapia, uma vez que, ao longo da sessão, terapeuta e cliente estão se comportando e um interferindo no comportamento do outro.
Os comportamentos do cliente podem ser agrupados em problemas (CCRs1), progressos (CCRs2) e interpretações (CCRs3). Os CCRs1 apareceriam em alta freqüência no inicio da terapia e deveriam diminuir de freqüência ao longo do processo. Os CCRs2 seriam os comportamentos que deveriam aumentar de freqüência e intensidade ao longo da terapia.

Conclusão
O presente texto teve como objetivo apresentar brevemente a importância da relação terapêutica no processo de mudança clínica. Assim, alguns princípios, conceitos, temas foram brevemente retomados e a Psicoterapia Analítica Funcional pode ser apontada como uma forma eficaz de terapia na qual dificuldades de relacionamentos interpessoais são centrais. E, segundo a literatura clínica, uma relação terapêutica satisfatória se mostra preditiva de bons resultados, inclusive com clientes que são considerados “difíceis”. Isso permite pensarmos em prognósticos favoráveis para clientes com transtornos de personalidade.
Este texto não tem a pretensão de aprofundar todas as questões discutidas, sendo apenas uma tentativa de fazer com que os terapeutas comportamentais se atentem a relação terapêutica como uma variável fundamental no processo de mudança clínica.

Palavras-chaves: relação terapêutica, psicoterapia analítica funcional, estudo de caso.

Referências
American Psychological Association (2002).Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais(4ª ed.)Porto Alegre:Artmed.
Follette, W. C.; Naugle, A. E.; Callaghan, G. M. (1996). A radical behavioral understanding of the therapeutic relationship in effecting change. Behavior Therapy, 27, 623-641.
Follette, W. C.; Naugle, A. E.; Linnerooth, P. J. N. (2000). Functional alternatives to traditional assessment and diagnosis. In M. J. Dougher, Clinical Behavior Analysis (pp. 99-125). Reno: Context Press.
Kohlenberg,R. J. & Tsai, M.(2001).Psicoterapia Analítica Funcional:criando relações terapêuticas intensas e curativas.Santo André:ESETec .
Matos, M. A. (1997). O Behaviorismo metodológico e suas relações com o mentalismo e o behaviorismo radical. Sobre Comportamento e Cognição: aspectos teóricos, metodológicos e de formação em análise do comportamento e terapia cognitivista, vol. 1, 54-67. Santo André: Arbytes.
Matos, M. A. (1999). Análise funcional do comportamento. Estudos de Psicologia. Vol. 16, n. 3, pp. 8-18.
Meyer, S. B. (2003). Análise funcional do comportamento. Em: Costa, C. E.; Luzia, J. C.; Sant’anna, H. H. N. Primeiros passos em análise do comportamento e cognição. Santo André: ESETec, 75-91.
Meyer, S. B., & Vermes, J. S. (2001). Relação terapêutica. Em B. Rangé (Org.). Psicoterapias cognitivo-comportamentais: um diálogo com a psiquiatria, pp. 101-110. Porto Alegre: Artmed.
Neno, S. (2003). Análise funcional: Definição e aplicação na terapia analítico-comportamental. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. V.2, 151-165.
Skinner, B. F. (1953). Science and human behavior. Nova York: Macmillan.
Skinner, B. F. (1974). About behaviorism. New York: A. Knopf.
Sturmey, P. (1996). Functional analysis in clinical psychology. Chichester: John Wiley & Sons.
Vermes, J. S., Zamignani, D. R., & Kovac, R. (2007). A relação terapêutica no atendimento clínico em ambiente extraconsultório. Em D. R. Zamignani, R. Kovac e J. S. Vermes (Orgs.), A clínica de portas abertas: experiências e fundamentação do acompanhamento terapêutico e da prática clínica em ambiente extraconsultório. São Paulo: Esetec.
Zamignani, D. R. (2007). O desenvolvimento de um sistema multidimensional para a caracterização de comportamentos na interação terapêutica. Tese de doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Texto Profª Dra. Rosalice Lopes


Ensaio sobre o filme O Pefurme: História de um assassino

Muitas são as análises possíveis deste filme. Neste texto deter-me-ei a algumas que penso, constituem o contexto onde toda a história de daquele que julgo ser uma espécie de “herói” – ao menos de si mesmo porque consegue seu intento ao final – se desenrola. Faço já a princípio uma pequena, mas sutil alteração no título original para o qual proponho ser: O perfume: buscando o controle sobre a paixão. Ao final espero que o leitor consiga perceber os fatos que me fizeram “brincar” com o título oficial do livro e do filme.

O livro de Patrick Suskind de 1985, transformado em filme em 2006 nos apresenta, em primeiro lugar, ao mundo da segunda metade do século XVIII na França. A vida de Jean Baptiste Grenouille se desenrola num período que antecede a Revolução Francesa, marco histórico que alterará significativamente a história da humanidade desembocando no que hoje conhecemos como o capitalismo.

Embalada na temática do filme, ou seja, um “mundo dos aromas” destaco alguns aspectos da experiência de Grenouille e tento estabelecer conexões com fatos sociais da época dando a cada um deles eles um caráter “aromático”.

Abandono - O aroma da decomposição

Jean Baptiste Grenouille nasce em 1738, numa França em decadência. Àquela época, a sociedade francesa era dividida em três estados – clero/nobreza/povo – camponeses e burgueses – e vivia um momento de profunda inquietação que antecedeu a Revolução Francesa.

Ao nascer, Grenouille enfrenta o aroma da morte e sobrevive. O aroma de uma sociedade onde ele, enquanto criança, nada valia. As mulheres da nobreza levavam seus filhos para serem amamentados por camponesas as quais abandonavam seus próprios filhos, muitos deles levados a orfanatos como os de Madame Gaillard.

Descartes, um século antes dos fatos descritos no filme, apresentava uma visão crítica da infância: “A infância é antes de mais nada fraqueza do espírito, período da vida em que a faculdade de conhecer, o entendimento, está sob total dependência do corpo.” As crianças que ainda à época de Jean Baptiste – e mesmo depois – eram consideradas estorvos e seres sem nenhuma importância, só passaram a ser uma preocupação social a partir dos anos 1760 – 1770 período em que nosso perfumista já havia consumado seu destino.

Grenouille é então um símbolo de abandono, rejeição e desprezo que marcou naquele período o destino de muitas crianças. Mãe, Madame Gaillard, Sr. Grimal, personagens fétidos de um mundo que se decompunha, de uma sociedade decadente.

Para Descartes, Jean Baptiste, certamente não seria visto como alguém que saiu da infância. Não podemos deixar de considerar que o olfato é dos sentidos, talvez o mais primitivo.

Paixão – O aroma da irracionalidade

Preso ao que tinha como um valor, seu talento único – e lembremos que talento na antiguidade era moeda de troca – Jean Baptiste, conhece Paris, um mundo de odores inexplorados.

É interessante notar seu lugar social em relação aos demais, sua postura “dócil” – um “animal” de carga. De longe sonhava com o que poderia ver, de perto mantém olhos fechados como quem não precisa ver o mundo para senti-lo. Mas Grenouille era um “animal” que pensava com a ganância típica da época. Uma ganância por odores.

É diante da loja do Sr. Pelissier, comerciante de sucesso, representante do poder social que Grenouille inala “Amor e Psique” e sente, pela primeira vez, o aroma da paixão. Em um mundo onde o perfume iniciava sua missão de disfarçar os aromas da podridão, Jean guiado por seu talento inebria-se com os feromônios da jovem ruiva. Seus bilhões de poros o conduzem para um lugar nunca antes visitado, um mundo para além das limitações, o paraíso virginal, o nirvana.

Mas é ali, naquele lugar que experimenta pela primeira vez seu poder de destruir. É ali em meio ao contato com o paraíso que, fugindo de ser identificado como alguém, reencontra a morte que marca sua vida como um ninguém. Ali, diante da morte, percebe que ela leva consigo o cheiro do que é vivo enquanto paixão.
A paixão é um sentimento combatido pelo Iluminismo Francês A razão (humana) deve dominar acima de tudo e acima de todos. Toda e qualquer atividade ou instituição que não fossem puramente racionais deveriam ser combatidas. Trava-se uma luta contra a fantasia, o sentimento, a paixão e às desigualdades sociais, porque a razão é universal. No campo social, econômico, político, religioso, tudo isto levou à demolição, à destruição da ordem constituída. O Iluminismo foi a mola racional propulsora da revolução francesa.
Grenouille é assim um anti-revolucionário que sente o aroma da paixão e, paradoxalmente, o revolucionário que a mata.

Desafio – O aroma da mudança

Grenouille, símbolo paradoxal de uma Revolução, a partir da morte da paixão propõe-se um projeto que poria fim a “sua vida infeliz”: ele aprenderia a preservar os aromas. Não poderia viver a paixão, ato irracional, mas preservá-la como perfume. Ao desafiar o decadente Baldini, Jean Baptiste deixa para trás o mundo do curtume, sai da periferia e se coloca no centro.

G.Baldini, membro da burguesia vê em Granouille a possibilidade de retomar o caminho da ascensão e a fuga da mediocridade. Sua casa que “ensaia um desabamento” mostra outro lado – talvez obscuro – do projeto burguês.

Embora ainda com status de mercadoria, Grenouille, o melhor nariz de Paris, vai aos poucos perdendo a docilidade. A jovem que o persegue no mundo dos sonhos lembra-o constantemente de seu projeto de preservar com a racionalidade das fórmulas e com a disciplina do trabalho duro aquilo que sua alma-psique não pode esquecer: a paixão.

Não conquista sua passagem para a liberdade de graça. Paga com seu talento único – aquele mesmo que Baldini afirma não ser o suficiente para ser um perfumista. Como numa maldição, mais uma vez, aquele que o trata como uma mercadoria, morre, mas na Pont au Change – a Ponte do Câmbio –, local das trocas, mudanças e transformações, somente o desabamento da casa de Baldini, alterou a paisagem.

Liberdade – o aroma da solidão

Sozinho, Grenouille opta por fugir à civilização, resolve subir ao alto das montanhas. Saído do lixo do mercado de peixes, dos fossos do curtume e do porão da loja de perfumes ele objetiva chegar ao local mais alto, a cidade dos verdadeiros perfumistas. Mas antes, pela primeira, vez quer ser livre para experimentar-se, para sentir-se.

Ao buscar tornar-se alguém importante, aquele que finalmente irá aprender a preservar o aroma da paixão, alguém com um lugar num mundo que começa a oferecer oportunidades a todos Grenouille descobre-se um ninguém. Ser, até então, ninguém para todos não tinha tido importância para ele. O sonho que revela sua invisibilidade diante da moça permite a ele perceber seu ser inodoro, sua trágica solidão. Seu fantástico talento se transforma em sua sombria vingança contra o aquele mundo que ainda não se sabia decadente.

Revolta – o aroma da morte

Grenouille, o assassino irracional e apaixonado, buscando provar que existia que era alguém excepcional, transforma-se no matador calculista. Após seu reencontro com o aroma paradisíaco a caminho de Grasse não tem outro objetivo a não ser encontrar a fórmula semelhante ao perfume encontrado em uma “tumba egípcia”.

Monta seu projeto do “perfume original”, um perfume que guarde a essência da paixão humana presente numa virgem. As virgens remetem ao divino, ao mais elevado, diferentes virgens compondo um panteão de “deusas sacrificadas” para preservar eternamente a paixão. Mas somente as virgens da nobreza têm nome: Françoise, Albine e aquela que foi para Grenouille a expressão máxima da paixão. As demais, camponesas, burguesas ou ainda membro da Igreja faziam parte do grupo dos sem nome, da massa.

A descoberta da fórmula racional de produção da essência que traria ao mundo o “perfume original” – os quatro acordes de cabeça, os quatro acordes de coração, os quatro acordes de fundo e a 13ª essência final – é feita, paradoxalmente, junto à “impureza”, uma prostituta. Na busca (ir)racional da paixão, vale qualquer estratégia.

Ignorantes do projeto, membros da sociedade pré-revolucionária, buscam um assassino que não teme a justiça social- Fórum, desafia a racionalidade cientifica – pai de Laura – e desdenha de Deus – Bispo. Uma sociedade frágil diante daquele que, mesmo sendo ninguém para todos, por meio do método da enfleurage extraía o óleo essencial das virgens.

Conquista - o aroma do vazio

Jean Baptiste atinge seu objetivo. Prova, mais para si mesmo do que para o mundo, que era capaz de produzir o “perfume original” – que podemos entender como primordial, primitivo e originário, coincidentemente feminino – um perfume para um mundo e uma sociedade que se masculinizava, que se banhava cada vez mais de racionalidade. Um mundo onde a 13ª essência vem de Laura, “a coroa de folhas de louro” que adornava a cabeça dos imperadores, ruiva de paixão, como a primeira.

Mas ao chegar lá se depara com a ausência. Ao perceber que tinha poder de controlar a tudo e a todos, que era praticamente Deus depara-se com o vazio que só pode ser preenchido com a paixão encarnada. Ao ver, pela primeira vez corpos solitários apaixonados que se completavam nas trocas tem a máxima experiência do vazio.

Para ele não há mais como conter tal descoberta. Desolado e perdido em sua racionalidade banha-se de paixão, de seu Perfume Original. A única saída para o vazio era ter, ao menos uma vez, “com-paixão”.

Retorna ao seu local de origem e ao transformar-se em alimento tem seu primeiro e único ato de amor.

Atenção: Este texto é um ensaio elaborado por mim, portanto, não apresento referências.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Texto Profª Dra. Alacir Villa Valle Cruces


As políticas públicas para a formação de psicólogos no Brasil: desafios e perspectivas para a inclusão e exclusão social. [1]

Preocupações com a formação de psicólogos vêm gerando discussões e estudos há pelo menos três décadas, e elas não se concentram apenas em nosso país. Na Europa as preocupações parecem estar ligadas, predominantemente, às possibilidades de intercâmbio entre profissionais de países pertencentes ao Mercado Comum Europeu. Já na América Latina, assim como no Brasil, as reflexões e as pesquisas procuram detectar formas de preparar esse profissional para aumentar sua inserção no mercado de trabalho e para que seu trabalho resulte em transformações individuais e sociais.
Na América Latina os estudos a que tivemos acesso mostram que a expansão desenfreada de cursos na área; a qualidade dos mesmos, pois muitos deles priorizam a teoria e o preparo técnico, dando poucas possibilidades de estágio e pouca ênfase à investigação; além do enfoque na clínica curativa e individualizada, centrada quase sempre na psicanálise, usada como fonte teórica predominante no treinamento dos futuros profissionais, como os principais problemas da formação.
As dificuldades de inserção no mercado de trabalho, freqüentemente apontadas, são, em geral, relacionadas a essas características dos cursos. Parecem ser responsáveis, também, pelas dificuldades percebidas pelos psicólogos ao atuarem com minorias excluídas e na defesa dos direitos desses mesmos indivíduos, temas para os quais vem sendo chamados a dar sua contribuição.
A defasagem entre a formação teórica, prática e em pesquisa, detectada nas pesquisas realizadas em nosso país entre as décadas de oitenta e noventa (Sindicatos os Psicólogos no Estado de São Paulo e Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região, 1984; Carvalho, 1989; Maluf,1999; CFP, 1988, 1992 e 1994, entre outras), parece dificultar a busca de soluções criativas, críticas e eficazes para enfrentar os problemas com os quais se deparam os psicólogos.
Estudos em História da Psicologia no Brasil permitem verificar que o objetivo principal das faculdades aqui instaladas era preparar profissionais para o Império, o que tornava a pesquisa desnecessária (Gomes, 2003). A discussão sobre a necessidade ou não de pesquisa na formação profissional vem se mantendo sem resposta única em nosso país até os dias de hoje. Consideramos, no entanto, que esse será o diferencial entre os profissionais.
Estudos e pesquisas sobre os problemas da formação e da atuação em Psicologia (Barreto, 1999; Bastos, 1990; Carvalho, 1982 e 1989; Gomide, 1988; Maluf, 1996 e 2001) têm assinalado a qualidade da formação e a inclusão da pesquisa nesse processo como fatores que permitirão a ampliação do campo de atuação profissional e a construção de práticas mais críticas.
A importância da pesquisa para o preparo de profissionais competentes vem sendo assinalada desde a criação da American Psychological Association (APA) e das reuniões que promoveu ao longo do século passado com o intuito de delinear padrões para a formação de psicólogos nos Estados Unidos da América, de onde surgiu o modelo de Boulder ou científico-profissional (scientist-practtioner model) que tem como pressuposto básico a necessidade de o psicólogo ser tanto um pesquisador quanto um profissional (Baker e Benjamin, 2000; Benjamin, 2001).
Na América Latina, em reunião realizada em Bogotá (Colômbia) em 1974, acordou-se, também, que a formação dos psicólogos deve prepará-lo científica e profissionalmente, delineando-se aí o modelo de Bogotá ou Latino-americano, que prevê estágios, para a firmação prática, e um trabalho de conclusão de curso, para a formação científica (Ardila, 2003).
Esses dados parecem ser suficientes para concluirmos que a pesquisa tem sido considerada fundamental para uma boa formação em psicologia. Bons pesquisadores são capazes de avaliar, questionar e observar necessidades específicas de uma determinada comunidade, levantando hipóteses sobre motivadores de comportamentos a serem estudados e planejando intervenções, também específicas, de onde se pode concluir que serão, também, bons psicólogos.
Belar (2000), Peterson (2000) e Stricker (2000), analisando a formação de psicólogos nos Estados Unidos, também assinalaram a importância de o psicólogo ser pesquisador, além de profissional, e constataram que grande parte dos psicólogos, principalmente os que trabalham na área clínica, não vê a pesquisa como necessária. Belar (2000) e Peterson (2000) acrescentam, ainda, que poucos se dedicam a desenvolver o tipo de questionamento que a ciência exige ou mostram preocupação com a pesquisa e a validação dos métodos e das técnicas utilizadas, pois nas instituições formadoras ela não é tão enfatizada e ensinada como deveria.
Gomes (2003), ao dissertar sobre as relações que se estabeleceram entre pesquisa e Psicologia no Brasil, mostra que, com a criação das Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, evidencia-se uma preocupação com pesquisa, mantida quando experimentos e testes desenvolvidos em países estrangeiros eram validados e replicados nos primeiros laboratórios de Psicologia brasileiros (entre 1906 a 1931) sem a preocupação com o contexto e com as especificidades das realidades pesquisadas, e que, a partir de 1932, até 1962, as aplicações práticas da psicologia em escolas, clínicas e indústrias atraíram mais o interesse dos profissionais do que a pesquisa. Com a regulamentação da profissão, em 1962, a prioridade sobre o ensino e sobre as técnicas aparece, mais uma vez, em detrimento da pesquisa de nossa realidade e da construção de novos conhecimentos.
A constatação de problemas na formação decorrentes da falta de professores titulados e de infra-estrutura para ensino, pesquisa e prática, na década de oitenta, provoca a mobilização para a busca de soluções. Uma das evidências é a de que os conhecimentos e as técnicas utilizadas eram inadequados à nossa realidade, constatação essa que gera discussões a partir das quais novos delineamentos são construídos para os cursos de graduação em Psicologia.
A partir da década de oitenta e mais enfaticamente ainda na década de noventa, começam a ser avaliadas e discutidas as condições e os problemas da profissão. Assim como assinalou Adair (2003), a profissão se revê. A precária formação em pesquisa é apontada como um dos fatores explicativos para os problemas detectados. Procedimentos para autorização e reconhecimento de cursos de graduação em Psicologia são regulamentados e avaliações sistemáticas dos mesmos começam a ser realizadas pelos órgãos competentes. Em todos os documentos insiste-se em que se dê ênfase, na formação do psicólogo, para o preparo em pesquisa e para que se estimulem alunos e professores a desenvolverem pesquisas, a redigirem relatórios e apresentá-los em congressos (Maluf, 1999 e 2001; Maluf, Cruces, Linard e Salazar, s/d; Cruces, 2006).
O artigo 10 do Decreto Lei nº 53.464, de 21 de janeiro de 1964, regulamentou a Lei 4119, de 27 de agosto de 1962, que havia regulamentado a profissão de psicólogo. Esse artigo previa que os cursos deveriam obedecer ao currículo mínimo, do qual faziam parte algumas disciplinas obrigatórias e algumas outras, opcionais, escolhidas pelas próprias faculdades, não sendo, nenhuma delas, direcionada especificamente para o preparo em pesquisa.
Durante as décadas iniciais de formação de psicólogos, como se pode depreender das exigências contidas na legislação em vigor, os profissionais tinham um preparo muito mais técnico e em atendimentos clínicos, do que em pesquisa ou no desenvolvimento de métodos e técnicas de intervenção sobre comportamentos, individuais, grupais ou institucionais (Cruces, 2006). Eram menos freqüentes ainda matérias ou estágios nos quais se discutissem questões relativas à prevenção e à qualidade de vida, sendo sempre priorizados procedimentos e técnicas de avaliação e de tratamento de desajustes, problemas ou distúrbios já instalados.
Avanços advindos da promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 394/96, de 1996) contribuíram para que a mudança necessária se concretizasse. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, assinadas em 2004, contém competências e habilidades profissionais a serem desenvolvidas nos graduandos, em substituição ao rol de disciplinas que ainda compunham grande parte dos cursos de Psicologia. Propõe que a formação seja organizada em um núcleo comum, pelo qual todas as instituições de ensino superior devem garantir o domínio de conteúdos básicos e necessários à atuação na área, e em ênfases curriculares, pelas quais as instituições delinearão um projeto pedagógico que contemple suas especificidades e adequem os cursos às suas realidades sócio-econômicas e geográficas.
O documento em questão prevê que a formação seja abrangente e pluralista, que se fundamente em bases teóricas e epistemológicas que sustentem práticas profissionais comprometidas com a realidade sociocultural; que o aluno seja preparado para analisar seu campo de atuação profissional, identificar necessidades de natureza psicológica e intervir de acordo com referenciais éticos e teóricos que mantenham compromisso social; que seja preparado para formular questões de investigação científica e para tomar decisões metodológicas quanto à escolha, coleta e análise de dados em projetos de pesquisa.
Essas mudanças nas políticas públicas para o ensino superior no Brasil contribuíram para que a pesquisa voltasse a fazer parte da formação dos psicólogos, incentivando, portanto, a busca de práticas, de intervenções e de estudos na e com a própria comunidade/realidade na qual estão inseridos. Documentos que regem atualmente a formação de psicólogos têm enfatizado a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, na tentativa de reafirmar uma tese que sempre esteve presente no preparo de profissionais na área. Ao guiarem-se pelas Diretrizes Curriculares recém-assinadas, os coordenadores de curso e seus dirigentes, vão, gradualmente inserindo-se em uma nova maneira de preparar profissionais.
Os avanços que essa proposta de formação contém são inegáveis. Porém, introduzir atividades práticas e de pesquisa, nas quais os alunos possam desenvolver habilidades necessárias a um bom profissional, vêm sendo o desafio que os coordenadores, diretores e professores dos cursos de graduação vêm enfrentando, a fim de garantir qualidade e eficiência.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia (2004, p 8) assinala, entre as competências consideradas necessárias ao psicólogo, a de “identificar, definir e formular questões de investigação científica no campo da Psicologia, vinculando-as a decisões metodológicas quanto à escolha, coleta, e características da população-alvo”; “escolher e utilizar instrumentos e procedimentos de coleta de dados em Psicologia, tendo em vista a sua pertinência”; “elaborar relatos científicos, pareceres técnicos, laudos e outras comunicações profissionais, inclusive materiais de divulgação”; “apresentar trabalhos e discutir idéias em público”; “saber buscar e usar o conhecimento científico necessário à atuação profissional, assim como gerar conhecimento a partir da prática profissional”. Em todas elas está implícito o preparo em pesquisa, a necessidade de observação criteriosa da realidade, que fundamente atuação profissional coerente.
Na medida em que os graduandos em Psicologia sejam colocados em situações práticas sobre as quais tenham que levantar questões, coletar dados que lhes permitam responder às questões formuladas e preparar intervenções adequadas, avaliando-as posteriormente, acreditamos que serão capazes de construir ciência de boa qualidade; que se baseie em elementos teóricos sustentáveis, mas que os recrie, os reorganize de acordo com as reais necessidades, ao invés de conformar a realidade a teorias já elaboradas.
Nesse movimento, que relaciona teoria, prática e pesquisa parece construir-se um verdadeiro profissional, capaz de lidar com as demandas que lhes são impostas, baseando-se em uma formação sustentável e de alta qualidade, que lhe permita fazer “boas” perguntas, para obter “boas” respostas.
Se o bom ensino é aquele que coloca dúvidas, que faz interrogações, que ensina a fazer a perguntas e não as responde pronta e mecanicamente, é esse ensino que permitirá a formação de melhores profissionais. A construção de uma sociedade mais saudável, em que pessoas busquem orientações e recursos advindos da ciência psicológica depende dessa formação profissional.

Referências

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[1] Professora do Centro Universitário de Santo André – UNIA/Anhanguera e Psicóloga da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey.