sábado, 1 de novembro de 2008

Texto Psic. Tiago Sanches Nogueira



Criação de Peter-Pans: Relato de uma experiência psicanalítica com crianças em um ambulatório de DST/AIDS.


Ruídos


Escrever sobre a experiência clínica é, na maioria das vezes, uma forma particular de nomear ruídos. Uma vez que tenha se dissipado qualquer tipo de sondagem acerca de um caso ou atendimento, o ruído encalacrado nas profundezas vem à tona e nos convida a pensar.
É o que está acontecendo agora neste exato momento enquanto escrevo. As lembranças, os sentimentos e sensações retornam de maneira estranha e desafiam o tempo, fazendo com que deste modo, todo um trabalho realizado possa finalmente, ser. Nas palavras de Lacan (1970), “É preciso tempo para fazer-se ser”.
Neste sentido, o tempo toma forma e permite que a experiência vivida se concretize em palavras para que assim, seja manifestada no entrelaçamento da temporalidade passada, presente e futura, tal qual afirmou Santo Agostinho em suas Confissões.
Deste modo, as dificuldades encontradas ao escrever sobre a experiência, legitimam o desejo de relatá-las. Eis o tempo de escrever, que inevitavelmente nos empurra para diante do rochedo da castração e nos faz quebrar em pedaços. Fragmentar-se e depois se juntar. Eis o fazer analítico.
Sem a menor intenção, o início do presente texto serve de mote ao meu relato. Falar sobre tempo, sobre passado, presente e futuro, é justamente falar sobre a experiência clínica que aqui desejo contar.
Explico. Sou Psicólogo em um ambulatório de infectologia que atende pacientes portadores do vírus HIV/AIDS. A especificidade deste trabalho se dá no momento em que nos deparamos com uma dezena de crianças soropositivas que herdaram de suas mães algo que não condiz com as heranças que estamos acostumados a ouvir falar.
Estes pacientes adquiriram o vírus HIV através da transmissão vertical - situação em que a criança é infectada durante a gestação, parto ou por meio da amamentação. Vale ressaltar, no entanto, que atualmente existem medidas eficazes para evitar o risco de transmissão materna. Dentre estas, podemos citar o diagnóstico precoce da gestante infectada, o uso de drogas anti-retrovirais, o parto cesariano programado, a suspensão do aleitamento materno substituindo-o por leite artificial (fórmula infantil) e outros alimentos, de acordo com a idade da criança. Quanto mais precoce o diagnóstico da infecção pelo HIV na gestante, maiores são as chances de evitar a transmissão para o bebê.
Segundo dados do site http://www.aids.gov.br/, a taxa de transmissão vertical do HIV pode chegar a 20%, ou seja, a cada 100 crianças nascidas de mães infectadas, 20 podem tornar-se HIV+. Com ações de prevenção, no entanto, a transmissão pode reduzir-se para menos de 1%. No ano de 2004, estimou-se que cerca de 12.000 parturientes estavam infectadas pelo HIV+ no Brasil. Foram notificados ao Ministério da Saúde, de janeiro de 1983 a junho de 2006, 10.846 casos de aids em menores de 13 anos de idade devido à transmissão vertical. Este número vem reduzindo ano a ano com a adoção de medidas de prevenção.
Os números das estatísticas não conseguem tamponar a angústia despertada frente à realidade dos fatos: por mais que existam formas de prevenção, nenhuma está preparada para o além do prazer descrito por Freud. Uma mãe que tem acesso a todas as medicações necessárias para evitar que o filho não nasça com HIV, se recusa a tomar o remédio; um casal com inúmeros filhos, sendo que um deles já é soropositivo, se apresenta diante do médico e diz: “ela está grávida mais uma vez!”; mães religiosas, “amantes do senhor”, não cumprem os esquemas medicamentosos que foram receitados para seus filhos, pois os anjos lhe anunciaram a cura...
Neste sentido a sustentação do discurso médico se torna inevitável, já que seus quadros nosográficos, bem como suas estratégias de contenção e prevenção de doenças, escapam aos fenômenos da clínica que, na prática, lançam o profissional ali envolvido à uma obscura teia de significações onde a impotência é apontada como importante estopim de aspectos contratransferenciais na relação médico-paciente.
Estar com um paciente que se vê encurralado pela morte e que tenta encontrar um único fio de ar para respirar vida, solicita muito mais do que somente uma atitude de compaixão e receptividade. Segundo Labaki (2001), além da disponibilidade necessária, implica tomar o paciente como semelhante, não só na condição de mortal, mas também, e principalmente familiarizar-se com o desamparo implicado na dor da ameaça de perda da vida. Daí, sofrer com o próprio grito é reconhecê-lo em quem sofre, oferecer-lhe sentido e dele depurar afeto, visando transformar o sofrimento em experiência passível de ser dita.
Logo se vê que as dificuldades que emergem nesta clínica não dizem respeito à apenas questões teóricas, o que coloca em xeque alguns princípios que conduzem um tratamento psicanalítico, e que foram formulados durante o percurso daquele que ali está implicado a dirigi-lo. Fundamentalmente, aberturas para a experiência singular surgem, permitindo com que se processe, a cada encontro em que se envolve o analista, uma nova prática.
Freud (1912) já apontava em suas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” que suas recomendações são adequadas à sua individualidade, admitindo assim, a possibilidade de outros analistas se depararem com condições distintas que os conduziriam a modificações da técnica. Nota-se no pai da psicanálise, uma grande preocupação em não enrijecer a técnica tornando-a mecânica. Em seu trabalho “Sobre o início do tratamento”, Freud (1913) discorre sobre esses riscos. Ele considera que a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica.
A genialidade de Freud nestas palavras se perpetua através do tempo, pois elas dão subsídio técnico para o constante embate contra a morte vivido na prática clínica que aqui vou relatar. Uma total entrega a regra de abstinência, por exemplo, impede que a aflição do paciente seja compreendida a ponto de dar o devido apreço a sua dor. Obviamente, não há interesse algum em abandonar fundamentais pressupostos técnico-teóricos da psicanálise, tal qual a regra de abstinência. No entanto se faz necessário uma profunda reflexão daquele que se dispõe a atender casos onde o paciente é atravessado por angústias que estão aquém da representação, tal qual nos mostra a clínica com pacientes soropositivos. Devidamente implicado, e necessariamente analisado, o analista, neste caso, deve em algum momento conduzir-se ao fundo de suas próprias privações, ser atraído para lá e rastreá-las. Labaki (2001) enfatiza a importância de:
“perguntar-se pela própria morte e entender que o desejo de pensar sobre seu significado produz um temor tão intenso, pelo próprio conteúdo do desejo, que se por um lado a idéia do desaparecimento de si próprio parece totalmente inapreensível, por outro, pode ter deixado rastros de puro terror – afetos disponíveis como alarme, angústia-sinal em estado bruto” (Labaki, 2001, p.52).
Eis o lado paradoxal deste embate. É sabido por todos que a morte é inevitável, porém alimentamos sonhos de imortalidade. A irrepresentabilidade da morte é descrita por Freud em 1915, quando ele relata que nosso inconsciente não crê em sua própria morte. Comporta-se como se fosse imortal, pois ele (o inconsciente) não conhece nada que é negativo, nenhuma negação. Segundo o autor, os opostos coincidem em seu interior e, por conseguinte, não conhece sua própria morte, pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo . Deste modo, nada existe de pulsional em nós que reaja a uma crença na morte.
Contudo, a experiência nos mostra que a consciência da decadência e dissolução do próprio corpo que aponta o caráter efêmero da vida, instala no sujeito um profundo descontentamento, e da mesma forma que descreveu Freud em “O mal estar na civilização” (1930), é a primeira fonte da infelicidade humana. O problema é que a AIDS corrobora e reforça essa fonte primordial de sofrimento, pois possui o poder (embora não seja a única doença capaz disso) de trazer a morte e antes disso, trazer a decrepitude do corpo. Estando doente de AIDS, é mais difícil ignorar o fim e, principalmente, a fragilidade do corpo diante das forças impiedosas da natureza. E é este corpo que dirá à criança soropositiva que algo não vai bem, uma vez que o freqüente silêncio dos pais em relação a doença só é quebrado frente a irrupção do somático.
“Uma criança é espantada”
“Ele sabe o que tem?”, pergunto a uma mãe aflita. “Não”, responde ela duvidosamente. “E o que ele pensa que vem fazer aqui toda semana, tomando esse monte de remédio?”, lhe indago. “Ele acha que faz tratamento para crescer”, responde apaticamente a mãe.
De forma geral, acredita-se que a análise de crianças seja um trabalho mais difícil de ser realizado que a análise de adultos, embora a criança seja mais direta, e, por ter defesas menos estruturadas, com freqüência fornece ao analista mais facilmente o material a ser trabalhado.
No entanto, há uma especificidade na clínica com crianças que, inevitavelmente, atravessa a experiência e interfere de forma importante nas configurações da prática clínica, modificando-as. Tal especificidade consiste no fato de a subjetividade infantil estar em processo de construção e, portanto, os pais têm papel determinante nesta formação.
Isto implica em resultados práticos imediatos, como por exemplo, o fato de que sempre temos que lidar com a presença e a interferência dos pais na clínica com crianças, já que a criança é totalmente dependente deles no que diz respeito aos aspectos do cotidiano. São os pais que trazem os filhos para a terapia, são os pais que decidem o rumo que a vida dos filhos irá tomar e principalmente, são os pais que constroem para a criança, um lugar no discurso. Nesse sentido, a forma como esses pais se posicionam em relação ao tratamento é decisiva, pois legítima e legalmente, a criança é objeto de cuidado dos seus pais. E na medida em que não tem responsabilidades, a sua palavra não tem um valor decisório. Este fato fundamental gera todo um campo de problemas. Que valor tem a palavra da criança? Que lugar ocupa a criança socialmente? Muitas vezes, verifica-se, na prática da análise de crianças, que os pais têm uma demanda e a criança outra. Nesse contexto, o analista responderá a que demanda?
O fato é que enquanto o corpo de uma criança soropositiva está em silêncio, nada existe para ser dito, já que algo da ordem de um segredo é fortemente protegido pelo círculo familiar. A crise se instala no instante do adoecimento, em que a confrontação com a verdade muitas vezes lança a criança à uma profunda confusão.
Revelado que algo não vai bem[1], instala-se um luto característico, descrito por Cedaro (2005) como o luto de um objeto que lhe fora arrancado, mas que não se trata de um objeto externo carregado de afeto. Desta forma, o objeto de amor perdido por essa criança é o seu próprio eu, principalmente o que ele era antes da doença. Em outras palavras, a descoberta da soropositividade ou de que algo não vai bem, traz a constatação da anterioridade, da soronegatividade, de que antes, as coisas iam bem.
Assim, do mesmo modo que alguém se recolhe após perder um objeto amado e faz um trabalho de luto para poder voltar a viver, o paciente doente de AIDS, em especial a criança, também vive um luto e precisa dizer adeus a metade arrancada, precisa substituir ou preencher o vazio dentro de si. A dificuldade está no fato de muitas vezes este vazio não ter nome, nem mesmo de vazio, impossibilitando uma tentativa de transformação desta realidade.

A especificidade de um campo
Não recuar frente a luta, outrora travada em estratos mais profundos da mente, e que agora é continuada numa região mais alta. Eis o desafio. Encarar a morte, fora da terra dos sonhos, confesso-lhes que não é das coisas mais fáceis! No entanto, a possibilidade de presentificar o vazio terrorífico, através da sublimação operada em análise, lança luz à penumbra da desesperança.
Jacques Lacan (1959-1960) lança mão do conceito de Coisa ou Das Ding (objeto perdido da espécie humana) para articular a fórmula que irá, ao final, ordenar a função da sublimação. Ele nos diz que a Das Ding escapa a significação, é indizível, é essa Coisa que padece do significante, o vazio no centro do real. A Coisa será sempre representada por um vazio, nos diz Lacan ao teorizar sobre a sublimação.
Deste modo a criação para Lacan caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio. Vazio esse, vivamente personificado quando alguém anuncia que aquelas crianças atendidas no ambulatório podem não crescer. O impacto de tal constatação possui conseqüências práticas imediatas. Duas são enumeradas: a primeira, seria o fato de constatarmos de que não há nada a fazer. De que os pequenos que ali freqüentam não passam de Peter Pans, cultivados para um futuro sem sentido, cuja significância do fim, é a única coisa que legitimará sua concepção, sua criação.
Por outro lado, temos a outra conseqüência. A de encararmos o desamparo e a precariedade da palavra frente a possibilidade do fim e presentificar a ausência, expor a falta, fazendo surgir o objeto em uma renovada dignidade, através da escuta. Assim, surgiria não uma criação de Peter Pans, mas sim criadores, cuja criação traria de volta o belo, que para Lacan é o último véu que nos protege do real.

Referências



AGOSTINHO, S. (1970). As confissões. Livro 11, cap. XIV. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Ed. De Ouro, 1970.
CEDARO, J. L (2005). Ferida na alma – os doentes de AIDS sob o ponto de vista psicanalítico. Tese de mestrado orientado por Ana Maria Loffredo, USP.
FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VII).
FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VII).
FREUD, S. (1915). Reflexões em tempos de guerra e morte. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV).
FREUD, S. (1930). O mal estar na civilização. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI).
LABAKI, M. E. P., (2001) Morte – São Paulo: Casa do Psicólogo (Coleção Clínica Psicanalítica)
LACAN, J . O seminário, livro 7. A ética da psicanálise. (1959 – 60). Jorge Zahar
LACAN, J. (1970) Radiophonie In: Scilicet 2/3.Paris:Seuil.


[1] Curiosamente muitas crianças atendidas por mim no Ambulatório de DST/AIDS não sabem de seus diagnósticos. Entretanto, há algo que parece saltar dos livros de Freud e instalar-se nas vidas desses pequeninos que é a vivência de algo estranhamente familiar. O não-dito sobre a doença parece retornar de uma maneira mórbida que se prende a certo resto existente no discurso dos pais. Em meu entendimento, algo de uma atuação do discurso parental se faz presente e lança a criança ao Unheimlich

Um comentário:

Anônimo disse...

Que belo texto! Percebe-se toda sensibilidade do nosso querido ex-aluno, que já era músico antes de ser psicólogo! Sensibilidade é condição necessária ao exercício da Psicologia - com o coração endurecido, sem emocionar-se ou sem compadecer-se da dor humana não é possível "atender" álguém, seja qual for a abordagem teórica que sustente a prática.
Parabéns Thiago!
Prof.a Ivone

Postar um comentário