quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Texto Profª Dra. Alacir Villa Valle Cruces


As políticas públicas para a formação de psicólogos no Brasil: desafios e perspectivas para a inclusão e exclusão social. [1]

Preocupações com a formação de psicólogos vêm gerando discussões e estudos há pelo menos três décadas, e elas não se concentram apenas em nosso país. Na Europa as preocupações parecem estar ligadas, predominantemente, às possibilidades de intercâmbio entre profissionais de países pertencentes ao Mercado Comum Europeu. Já na América Latina, assim como no Brasil, as reflexões e as pesquisas procuram detectar formas de preparar esse profissional para aumentar sua inserção no mercado de trabalho e para que seu trabalho resulte em transformações individuais e sociais.
Na América Latina os estudos a que tivemos acesso mostram que a expansão desenfreada de cursos na área; a qualidade dos mesmos, pois muitos deles priorizam a teoria e o preparo técnico, dando poucas possibilidades de estágio e pouca ênfase à investigação; além do enfoque na clínica curativa e individualizada, centrada quase sempre na psicanálise, usada como fonte teórica predominante no treinamento dos futuros profissionais, como os principais problemas da formação.
As dificuldades de inserção no mercado de trabalho, freqüentemente apontadas, são, em geral, relacionadas a essas características dos cursos. Parecem ser responsáveis, também, pelas dificuldades percebidas pelos psicólogos ao atuarem com minorias excluídas e na defesa dos direitos desses mesmos indivíduos, temas para os quais vem sendo chamados a dar sua contribuição.
A defasagem entre a formação teórica, prática e em pesquisa, detectada nas pesquisas realizadas em nosso país entre as décadas de oitenta e noventa (Sindicatos os Psicólogos no Estado de São Paulo e Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região, 1984; Carvalho, 1989; Maluf,1999; CFP, 1988, 1992 e 1994, entre outras), parece dificultar a busca de soluções criativas, críticas e eficazes para enfrentar os problemas com os quais se deparam os psicólogos.
Estudos em História da Psicologia no Brasil permitem verificar que o objetivo principal das faculdades aqui instaladas era preparar profissionais para o Império, o que tornava a pesquisa desnecessária (Gomes, 2003). A discussão sobre a necessidade ou não de pesquisa na formação profissional vem se mantendo sem resposta única em nosso país até os dias de hoje. Consideramos, no entanto, que esse será o diferencial entre os profissionais.
Estudos e pesquisas sobre os problemas da formação e da atuação em Psicologia (Barreto, 1999; Bastos, 1990; Carvalho, 1982 e 1989; Gomide, 1988; Maluf, 1996 e 2001) têm assinalado a qualidade da formação e a inclusão da pesquisa nesse processo como fatores que permitirão a ampliação do campo de atuação profissional e a construção de práticas mais críticas.
A importância da pesquisa para o preparo de profissionais competentes vem sendo assinalada desde a criação da American Psychological Association (APA) e das reuniões que promoveu ao longo do século passado com o intuito de delinear padrões para a formação de psicólogos nos Estados Unidos da América, de onde surgiu o modelo de Boulder ou científico-profissional (scientist-practtioner model) que tem como pressuposto básico a necessidade de o psicólogo ser tanto um pesquisador quanto um profissional (Baker e Benjamin, 2000; Benjamin, 2001).
Na América Latina, em reunião realizada em Bogotá (Colômbia) em 1974, acordou-se, também, que a formação dos psicólogos deve prepará-lo científica e profissionalmente, delineando-se aí o modelo de Bogotá ou Latino-americano, que prevê estágios, para a firmação prática, e um trabalho de conclusão de curso, para a formação científica (Ardila, 2003).
Esses dados parecem ser suficientes para concluirmos que a pesquisa tem sido considerada fundamental para uma boa formação em psicologia. Bons pesquisadores são capazes de avaliar, questionar e observar necessidades específicas de uma determinada comunidade, levantando hipóteses sobre motivadores de comportamentos a serem estudados e planejando intervenções, também específicas, de onde se pode concluir que serão, também, bons psicólogos.
Belar (2000), Peterson (2000) e Stricker (2000), analisando a formação de psicólogos nos Estados Unidos, também assinalaram a importância de o psicólogo ser pesquisador, além de profissional, e constataram que grande parte dos psicólogos, principalmente os que trabalham na área clínica, não vê a pesquisa como necessária. Belar (2000) e Peterson (2000) acrescentam, ainda, que poucos se dedicam a desenvolver o tipo de questionamento que a ciência exige ou mostram preocupação com a pesquisa e a validação dos métodos e das técnicas utilizadas, pois nas instituições formadoras ela não é tão enfatizada e ensinada como deveria.
Gomes (2003), ao dissertar sobre as relações que se estabeleceram entre pesquisa e Psicologia no Brasil, mostra que, com a criação das Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, evidencia-se uma preocupação com pesquisa, mantida quando experimentos e testes desenvolvidos em países estrangeiros eram validados e replicados nos primeiros laboratórios de Psicologia brasileiros (entre 1906 a 1931) sem a preocupação com o contexto e com as especificidades das realidades pesquisadas, e que, a partir de 1932, até 1962, as aplicações práticas da psicologia em escolas, clínicas e indústrias atraíram mais o interesse dos profissionais do que a pesquisa. Com a regulamentação da profissão, em 1962, a prioridade sobre o ensino e sobre as técnicas aparece, mais uma vez, em detrimento da pesquisa de nossa realidade e da construção de novos conhecimentos.
A constatação de problemas na formação decorrentes da falta de professores titulados e de infra-estrutura para ensino, pesquisa e prática, na década de oitenta, provoca a mobilização para a busca de soluções. Uma das evidências é a de que os conhecimentos e as técnicas utilizadas eram inadequados à nossa realidade, constatação essa que gera discussões a partir das quais novos delineamentos são construídos para os cursos de graduação em Psicologia.
A partir da década de oitenta e mais enfaticamente ainda na década de noventa, começam a ser avaliadas e discutidas as condições e os problemas da profissão. Assim como assinalou Adair (2003), a profissão se revê. A precária formação em pesquisa é apontada como um dos fatores explicativos para os problemas detectados. Procedimentos para autorização e reconhecimento de cursos de graduação em Psicologia são regulamentados e avaliações sistemáticas dos mesmos começam a ser realizadas pelos órgãos competentes. Em todos os documentos insiste-se em que se dê ênfase, na formação do psicólogo, para o preparo em pesquisa e para que se estimulem alunos e professores a desenvolverem pesquisas, a redigirem relatórios e apresentá-los em congressos (Maluf, 1999 e 2001; Maluf, Cruces, Linard e Salazar, s/d; Cruces, 2006).
O artigo 10 do Decreto Lei nº 53.464, de 21 de janeiro de 1964, regulamentou a Lei 4119, de 27 de agosto de 1962, que havia regulamentado a profissão de psicólogo. Esse artigo previa que os cursos deveriam obedecer ao currículo mínimo, do qual faziam parte algumas disciplinas obrigatórias e algumas outras, opcionais, escolhidas pelas próprias faculdades, não sendo, nenhuma delas, direcionada especificamente para o preparo em pesquisa.
Durante as décadas iniciais de formação de psicólogos, como se pode depreender das exigências contidas na legislação em vigor, os profissionais tinham um preparo muito mais técnico e em atendimentos clínicos, do que em pesquisa ou no desenvolvimento de métodos e técnicas de intervenção sobre comportamentos, individuais, grupais ou institucionais (Cruces, 2006). Eram menos freqüentes ainda matérias ou estágios nos quais se discutissem questões relativas à prevenção e à qualidade de vida, sendo sempre priorizados procedimentos e técnicas de avaliação e de tratamento de desajustes, problemas ou distúrbios já instalados.
Avanços advindos da promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 394/96, de 1996) contribuíram para que a mudança necessária se concretizasse. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, assinadas em 2004, contém competências e habilidades profissionais a serem desenvolvidas nos graduandos, em substituição ao rol de disciplinas que ainda compunham grande parte dos cursos de Psicologia. Propõe que a formação seja organizada em um núcleo comum, pelo qual todas as instituições de ensino superior devem garantir o domínio de conteúdos básicos e necessários à atuação na área, e em ênfases curriculares, pelas quais as instituições delinearão um projeto pedagógico que contemple suas especificidades e adequem os cursos às suas realidades sócio-econômicas e geográficas.
O documento em questão prevê que a formação seja abrangente e pluralista, que se fundamente em bases teóricas e epistemológicas que sustentem práticas profissionais comprometidas com a realidade sociocultural; que o aluno seja preparado para analisar seu campo de atuação profissional, identificar necessidades de natureza psicológica e intervir de acordo com referenciais éticos e teóricos que mantenham compromisso social; que seja preparado para formular questões de investigação científica e para tomar decisões metodológicas quanto à escolha, coleta e análise de dados em projetos de pesquisa.
Essas mudanças nas políticas públicas para o ensino superior no Brasil contribuíram para que a pesquisa voltasse a fazer parte da formação dos psicólogos, incentivando, portanto, a busca de práticas, de intervenções e de estudos na e com a própria comunidade/realidade na qual estão inseridos. Documentos que regem atualmente a formação de psicólogos têm enfatizado a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, na tentativa de reafirmar uma tese que sempre esteve presente no preparo de profissionais na área. Ao guiarem-se pelas Diretrizes Curriculares recém-assinadas, os coordenadores de curso e seus dirigentes, vão, gradualmente inserindo-se em uma nova maneira de preparar profissionais.
Os avanços que essa proposta de formação contém são inegáveis. Porém, introduzir atividades práticas e de pesquisa, nas quais os alunos possam desenvolver habilidades necessárias a um bom profissional, vêm sendo o desafio que os coordenadores, diretores e professores dos cursos de graduação vêm enfrentando, a fim de garantir qualidade e eficiência.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Psicologia (2004, p 8) assinala, entre as competências consideradas necessárias ao psicólogo, a de “identificar, definir e formular questões de investigação científica no campo da Psicologia, vinculando-as a decisões metodológicas quanto à escolha, coleta, e características da população-alvo”; “escolher e utilizar instrumentos e procedimentos de coleta de dados em Psicologia, tendo em vista a sua pertinência”; “elaborar relatos científicos, pareceres técnicos, laudos e outras comunicações profissionais, inclusive materiais de divulgação”; “apresentar trabalhos e discutir idéias em público”; “saber buscar e usar o conhecimento científico necessário à atuação profissional, assim como gerar conhecimento a partir da prática profissional”. Em todas elas está implícito o preparo em pesquisa, a necessidade de observação criteriosa da realidade, que fundamente atuação profissional coerente.
Na medida em que os graduandos em Psicologia sejam colocados em situações práticas sobre as quais tenham que levantar questões, coletar dados que lhes permitam responder às questões formuladas e preparar intervenções adequadas, avaliando-as posteriormente, acreditamos que serão capazes de construir ciência de boa qualidade; que se baseie em elementos teóricos sustentáveis, mas que os recrie, os reorganize de acordo com as reais necessidades, ao invés de conformar a realidade a teorias já elaboradas.
Nesse movimento, que relaciona teoria, prática e pesquisa parece construir-se um verdadeiro profissional, capaz de lidar com as demandas que lhes são impostas, baseando-se em uma formação sustentável e de alta qualidade, que lhe permita fazer “boas” perguntas, para obter “boas” respostas.
Se o bom ensino é aquele que coloca dúvidas, que faz interrogações, que ensina a fazer a perguntas e não as responde pronta e mecanicamente, é esse ensino que permitirá a formação de melhores profissionais. A construção de uma sociedade mais saudável, em que pessoas busquem orientações e recursos advindos da ciência psicológica depende dessa formação profissional.

Referências

Adair, J. (2003). The internalization of our discipline: the position of Latin America in the world of psychology. Anais do 29o Congreso Interamericano de Psicologia. Peru, Conferencia em CD-ROM.
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[1] Professora do Centro Universitário de Santo André – UNIA/Anhanguera e Psicóloga da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey.

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